25 de março de 2008

Cadê a vaia?

Hoje o UOL noticiou as dificuldades que o grupo de teatro Os Satyros passou com sua apresentação da peça Vestido de Noiva em Curitiba. O espetáculo é multimídia e mistura artes cênicas com projeções em vídeo. Pois bem, a apresentação de estréia teve apenas meia-hora, pois houve problemas com a projeção. O grupo ficou em pânico, a peça foi adiada e a experiente atriz Norma Bengell saiu do palco aos prantos. E o público vaiou, vaiou e vaiou. Sabe por qual motivo, meu fiel leitor? Porque queriam o dinheiro de volta. O fato é revoltante por dois motivos: por associar uma expressão cultural a mais mesquinha relação de consumo e por só haver vaia em espetáculos se for por dinheiro. Qual foi a última vez que você ouviu vaia em teatro, cinema, shows musicais, debates, etc, afinal? A vaia sincera, infelizmente, é um artigo em extinção.

Há diversas peças de teatro chatas. E, pior: conceitualmente patéticas, seja por agressividade boba ou por defender pontos indefensáveis. Shows de música, então, nem se fala. Debate de jornalismo também costuma ser uma tristeza. Sempre tem um pra falar besteira em cima de besteira. E o público fica lá, com cara de sonso, e o aplauso soa tão natural quanto respirar. Falta posicionamento, falta protesto, falta inquietude. Falta fugir do lugar-comum, esse buraco negro que suga tudo e todos impiedosamente.

Como disse o diretor teatral Gerald Thomas (é, aquele chato): “É melhor uma vaia emocionada do que aplausos insossos”. Entretanto, também não é defensável a vaia pela vaia. Algumas são tão estúpidas quanto aplausos sem graça, como a famosa que ocorreu contra a música Sabiá, em 1968, tendo como alvo Chico Buarque, Tom Jobim e as irmãs Cynara e Cybele. Cego pela forte e politizada música Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, o público no Maracanãzinho não percebeu que ali estava a nova canção do exílio. Enfim, a história mostrou que tanto Geraldo Vandré quanto Tom e Chico estavam certos. E que aquela vaia foi burra.

Mas, desde então, se tornou exceção. Lembro-me a sofrida pelo Lobão no Rock in Rio de 1985, e a do Carlinhos Brown numa outra edição do festival. De resto, com poucas exceções, se aceita tudo. Desde que não tenha grana no meio, claro.

Só o futebol salva

O futebol é a última expressão culturalmente genuína do Brasil. Lá, o público não está presente para resgatar um movimento histórico importante e nem para homenagear o modo de ser do brasileiro. É verdadeiro, é pulsante, é espontâneo. E a vaia ocorre tão naturalmente quanto o aplauso, a cada segundo. O humor muda conforme o que os torcedores vêem. Um jogador errou uma jogada mas mostrou raça? Quase todos aplaudem, alguns vaiam o perna-de-pau. Um atacante habilidoso dribla metade do time adversário mas chuta displicentemente? Os xingamentos soam alto no estádio. É um show com preço considerável, que dura 90 minutos e que, ultimamente, tem apresentações sofríveis. Mas é bem difícil ouvir: “Nossa, paguei R$ 20 e vi um joguinho. Quero meu dinheiro de volta!”. Essa frase é rara porque os espectadores lotam os estádios por emoção, e não por status. A mesma coisa que esse público curitibano devia ter feito.

14 de março de 2008

"Morreu na contramão atrapalhando o tráfego"

A letra completa de música, obviamente, é importante. Mas há versos que têm força para se destacar do texto, para tirar o fôlego, para se tornar quase slogans.
Demorou. Mas depois de centenas (ou talvez milhares) de e-mails pedindo o ranking de Eu Quero um Samba sobre os melhores versos da música brasileira de todos os tempos, a lista finalmente está pronta. Vamos a ela:

1º - “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, de Construção (Chico Buarque)

2 ª – “Tire seu sorriso do caminho que quero passar com a minha dor”, de A Flor e o Espinho (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito)

3º - “Não confio na polícia, raça do caralho”, de Homem na Estrada (Racionais MCs)

4º “Relógio em vez de retrato na cabeceira”, de Cara Limpa (Paulo Vanzolini)

5º “Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro, já passou de português”, de Não tem Tradução (Noel Rosa)

6º “Ali onde eu chorei, qualquer um chorava, dar a volta por cima que eu dei quero ver quem dava”, de Volta por Cima (Paulo Vanzolini)

7º “Vinte e cinto, francamente, foi de graça”, de Praça Clóvis (Paulo Vanzolini)

8º “Tudo penso e nada falo, tenho medo de chorar”, de Último Desejo (Noel Rosa)

9º “Teus seios inda estão nas minhas mãos”, de Eu te Amo (Chico Buarque)

10º “Feliz daquele que sabe sofrer”, de Rugas (Nelson Cavaquinho, Augusto Garcez e Ary Monteiro)

11º “Te perdôo por te trair”, de Mil Perdões (Chico Buarque)

12º “Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia quem brincava de princesa acostumou na fantasia”, Quem te viu, Quem te vê (Chico Buarque)

13º “Quem trouxe você fui eu, não faça papel de louca”, de Sem Compromisso (Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro)

14º “E me beija com a boca de hortelã”, de Cotidiano (Chico Buarque)

15º “Impulsos de amor, de amor, três”, de Identificação (Tom Zé)

16º “E dei pra maldizer o nosso lar”, de Atrás da Porta (Francis Hime e Chico Buarque

17º “Deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa”, Gota D’água (Chico Buarque)

18º “É samba que eles querem, nada mais”, de A Ordem é Samba (Jackson do Pandeiro)

19º “A tempo de poder a gente se desvencilhar da gente”, de Todo o Sentimento (Cristóvão Bastos e Chico Buarque)

20º “Quando me roça a nuca e quase me machuca com a barba malfeita”, de O meu Amor (Chico Buarque)

21º “Te recolher pra sempre à escuridão do ventre, curuminha” de Uma Canção Desnaturada (Chico Buarque)

22º “Eu só sei que quando eu a vejo me dá um desejo de morte ou de dor”, de Nervos de Aço (Lupicínio Rodrigues)

23º “Que este já não bate nem apanha", de Socorro (Arnaldo Antunes)

24º “Meu samba vai, diz a ela que o coração não tem cor”, de Preconceito (Wilson Batista)

25º “Que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais”, de Pedaço de Mim (Chico Buarque)

26º “Que se dane o Evangelho e todos os orixás”, de Dueto (Chico Buarque)

27º “É desconcertante rever o grande amor”, de Anos Dourados (Tom Jobim e Chico Buarque)

28º “Sabe lá se está vestida ou se dorme transparente”, de A Noiva da Cidade (Chico Buarque)

29º “Não arranque minha cabeça da sua cortiça”, de Leve (Chico Buarque e Carlinhos Vergueiro)

30º “Por amor, por favor é pra ela voltar, sim” (Vinícius de Moraes e Chico Buarque)

31º “Mas depois de um ano eu não vindo ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”, de Acorda Amor (Chico Buarque)

32º “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos”, de Mamãe, Coragem (Torquato Neto)

33º “Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?”, de Senhor Cidadão (Tom Zé)

34º “Deus me ensinou praticar o bem, Deus me deu essa bondade”, de Cuidado com a Outra (Nelson Cavaquinho)

35º “Sei que ela pode ser mil, mas não existe outra igual”, de Ela faz Cinema (Chico Buarque)

36º “Não posso mais, eu quero é viver na orgia”, de Oh! Seu Oscar (Wilson Batista)

37º “Batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio”, de Feitio de Oração (Noel Rosa e Vadico)

38° “O meu luto é saudade e saudade não tem cor”, de Silêncio de um Minuto (Noel Rosa)

39º “Ser estrela é bem fácil, sair do Estácio é que é o X do problema”, de O X do Problema (Noel Rosa)

40º “Dispensa essa vadia, eu vou voltar”, de Palavra de Mulher (Chico Buarque)

41° “Mas não vai dizer depois que você não tem vestido, que o jantar não dá pra dois”, de Você Vai se quiser (Noel Rosa)

42º “Minha alma segue aflita e eu me esqueço até do futebol”, de Falando de Amor (Tom Jobim)

43° “Solidão apavora, tudo demorando em ser tão ruim”, de Desde que o Samba é Samba (Caetano Veloso)

44º° “Meu Deus do céu, que palpite infeliz”, de Palpite Infeliz (Noel Rosa)

45° “E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal ”, de Haiti(Caetano Veloso)

46º “Certezas e esperanças pra trocar por dores e tristezas que bem sei um dia ainda vão findar”, de Porta Estandarte (Geraldo Vandré)

47º “Isso não acontece”, de Acontece (Cartola)

48º “Deixando espinhos que dilaceram meu coração
”, de Não quero mais Amar a ninguém (Cartola)

49° “Meu coração tem mania de amor”, de Foi um Rio que Passou na minha Vida (Paulinho da Viola)

50º “Piririm,piririm, piririm, alguém ligou pra mim”, de Atoladinha (Bola de Fogo – em homenagem a Luiz Cotrim)

Lista sujeita a alteração sem aviso prévio.

Obs: ter muito “Chico Buarque” é culpa dele, não minha.

11 de março de 2008

O bloco do Oscar

João encara o grande museu feito por Oscar Niemeyer, postado entre as rochas e o mar de um dos principais bairros de Niterói. Parece um disco voador ou, quem sabe, uma miragem. Mesmo sendo do prestigiado arquiteto, a visão é mais bonita do que a expectativa. A chuva cai e está anoitecendo. O Corcovado já não é mais visível do lado menos glamouroso da Baía da Guanabara. As pessoas que seguem o bloco carnavalesco parecem que esbarram menos em seu ombro. A música das baterias, pandeiros e trombones fica em terceiro plano, soando apenas como um pequeno zumbido. As águas do céu o molham confortavelmente. João pensa em como é bom se surpreender, e passa os olhos pela passarela em forma de serpente que leva à entrada. Fica boquiaberto e surge um sorriso quase infantil em seu rosto. “Vamos, porra”, grita Paulo. Caso se percam, será difícil voltar à Lapa, bairro em que estão hospedados. Ambos dependem da carona de uma terceira pessoa, Maria, que está no front do bloco, com uma mini-fantasia de Cleópatra cercada de homens mais mal-intencionados do que Júlio César.

“Vamos tirar a Maria do meio daqueles tarados. Ela ta bêbada pra cacete”, grita Paulo, mais preocupado com a carona do que com o bem-estar da menina. Puxa o amigo pela junção do braço e antebraço, para tirá-lo daquela contemplação considerada inútil. “Amanhã você compra um postal. Museu não combina com diversão, pô!”. João finge que concorda, e começa a andar rápido entre as pessoas dançantes. Enrolado em todas as serpentinas do carnaval, enfim ultrapassa a bateria. Encontra a menina de cabelos vermelhos quase agarrada com um pit-boy sem camisa e com boné da Raça Fla para trás. Paulo a interpela: “Tá anoitecendo, Maria, e essa chuva já ta enchendo. Vamos continuar na Lapa”. O flamenguista não gosta da interrupção, e o encara como se fosse aplicar um mata-leão. Percebendo o perigo, João se mete entre os dois, empurra o cara com o cotovelo – mas sem força – e diz que a amiga está passando mal, que realmente precisa ir embora. Não se sabe bem porquê, mas o pit-boy balança a cabeça afirmativamente, diz que o melhor é que cuidem da menina e se perde na multidão, cantando a marchinha “Bafo-de-Onça”. Paulo e João sorriem aliviados. Maria bufa, mas concorda em ir para o Rio.


Entre a ponte

O Palio está na Ponte Rio-Niterói, pela pista da direita. Segue no máximo a 60 quilômetros por hora. João está no comando, enquanto Paulo dorme ao seu lado, com a cabeça encostada na porta. No banco traseiro, Maria fala sem parar, lembrando dos “gatinhos maravilhosos” que havia nas ruas niteroienses. O motorista não quer saber de nada. Liga o som do carro. Um locutor com voz empolgada (e quase brega) afirma aos berros que o carnaval carioca é o maior espetáculo da Terra. O som é novamente desligado.

Já na alça de acesso ao centro do Rio, Paulo acorda e diz que está a fim de continuar em algum bar da Lapa. Maria concorda: “Não volto para a casa de forma alguma”. João não diz nada. Leva a dupla para uma rua atrás dos arcos e se despede. Segue, sozinho, para a casa. Deixa o carro no estacionamento e sobe pela escada os seis andares do prédio decadente. Abre completamente a janela e enquanto a brisa geladíssima invade a casa, tenta encontrar a ponte. Busca Niterói. Procura o monumento do Oscar, agora deste lado da Baía. Mas a neblina não deixa.

3 de março de 2008

Pedro sorri

Pedro está preocupado. Preocupado, aliás, é eufemismo. Em sua sala de trabalho o publicitário mira-se no espelho e vê o resultado da noite anterior. Olheiras profundas, cabelo de vassoura, camisa amassada. A noite foi longa, na cama de uma desconhecida agradável, e não houve tempo para tomar banho. A menina, apesar de interessante, não tem potencial para se tornar apaixonante. O verdadeiro amor, este sim, Pedro marcou de encontrar em uma hora. Eles não se vêem há quatro meses, desde que ela resolveu terminar o namoro de três anos e meio durante uma viagem a Buenos Aires. E este reencontro é o motivo do desespero. E de suas olhadas desanimadoras ao espelho. Não quer parecer a imagem da desolação.

São 17h53. Faltam sete minutos para ir embora. Neste tempo, esquece um pouco sua (má) aparência e diversos desejos bons vêm à cabeça. Ela deve estar linda. Deve estar feliz profissionalmente. E deve estar triste amorosamente. Pedro sorri.

Mas, ao descer do elevador do prédio em que trabalha, o grande espelho a sua frente o relembra que ela não pode o ver assim. Então decide ir a um shopping, ao lado do seu trabalho. Primeira parada: Hering. Compra uma camisa cinza, nem tão larga e nem tão justa. Gosta do que vê, afinal cultiva um estilo sóbrio.

Parada número dois: banheiro. O cara, novamente com o espelho a sua frente, molha muito o rosto e o cabelo. Tira oito papéis descartáveis do suporte e vai secando enquanto modela os fios. O resultado também é bom. Ao menos, parece que tomou banho nas últimas 24 horas.

Parada três, e esta a mais pouco usual aos seus hábitos: Boticário. Em geral, Pedro recusa-se a usar perfume. Mas lembra que sua amada, no começo do namoro, reclamava desta condição. Então finge que quer experimentar alguns para seu pai (ele mente que era aniversário do velho). A vendedora espirra alguns nos papéis próprios para este fim. Quando encontra o que mais lhe agrada, pede para ela borrifar em dois papéis. E diz que já volta. Já no corredor do shopping, Pedro passa os papéis no pescoço, no pulso, na barba. Agora já se sente decentemente preparado para encará-la.

Entra no carro. Falta apenas meia-hora para chegar ao local marcado, e atraso é algo abominável para ele. Chove uma chuva forte em São Paulo. Ele buzina, quase põe o tronco inteiro para fora para xingar o motorista da frente, que insiste em dar passagem a outros carros. Um marronzinho olha feio e saca de sua caderneta de multas, mas é apenas uma ameaça. Pedro desculpa-se, respira fundo e tenta manter a calma de um praticante de yoga. Logo ele, que costuma ter a paz de um torcedor do Corinthians em dia de final com o Palmeiras.

Chega em frente ao estacionamento do bar combinado. Entre deixar as chaves com o motorista e entrar no bar, passam séculos. Nos dez passos que dá até a entrada, arrepende-se, fica bravo, sente saudade, pensa em agarrá-la, planeja fugir. Não sabe se a menina o desprezará, será blasé, o abraçará firme ou se irá pedir de joelhos para voltar. Empurra a porta de vidro e procura seus cabelos pretos entre as mesas redondas (e desconfortáveis) daquele bar metido a besta. Não encontra. Apesar de odiar atraso, sabe que este é um dos costumes da amada. Releva essa característica e põe-se numa mesa. Pede água com gás. Pelo nervosismo, torna-se praticamente um craque em origami, ao fazer as mais abstratas formas nos guardanapos. A garçonete olha feio.

Irrita-se novamente ao olhar o relógio com o logotipo da Brahma que está acima do caixa. A espera já é de 17 minutos. Acha um absurdo entrar em duas lojas, gastar dinheiro, quase ser multado, e chegar no horário, enquanto a menina que teoricamente não tinha compromisso algum no dia – ela está de férias – não se preocupa em estar às 19h em ponto.

Quando pensa em ir ao banheiro para lavar o rosto e arrumar novamente o cabelo, eis o grande acontecimento: ela entra, mas ainda não o percebe no bar. Pedro, que já havia se semi-erguido da cadeira dura, senta-se novamente. Em milésimos a analisa. O cabelo está bem curto. Ela deve ter emagrecido uns dois quilos. Mudou a armação dos óculos, agora para um modelo mais simples, sem cores gritantes. Está bronzeada, mas nem tanto. As roupas são elegantemente alternativas, com uma calça mole de um tecido que não identifica, uma camiseta estranha com a imagem de Mao Tse Tung e um tênis All Star amarelo. Algo que ele traduz como “para fazer charme, mas não parecer atraente”. E finaliza em seu pessimismo habitual: “para se afastar de mim”.

Ela o reconhece no bar. Depois de meses, este é o primeiro contato visual entre os dois, excetuando suas encaradas diárias na foto três por quatro que carrega na carteira, que o lanceiro da Praça Clóvis insiste em não roubar. Eles se cumprimentam com um abraço e um beijo no rosto, há quilômetros da boca. Ela dá um sorriso largo, cativante. Ele sorri de canto de boca, tentando parecer firme, mas não efusivo.

Pedro diz “Olá, tudo bem?”, enquanto reúne com a mão direita a bagunça de guardanapos que deixou na mesa. Ela sorri novamente, por perceber que foi uma das frases mais artificiais que já falara na vida. Ainda o conhece bem, e manda um “Primeira coisa, Pedro: relaxa”. Pedro não relaxa. Apenas se irrita com aquele poço de segurança. Mas disfarça.

“Como está no escritório?”, pergunta, agora com uma voz mais natural. Ela diz que tudo está teoricamente bem, mas que já se encheu do chefe, da dinâmica de trabalho e das estagiárias. “Quero prestar concurso. É a melhor solução pra quem se formou em Direito”. Pedro, enquanto responde “Ah, acho uma boa solução”, pensa: “Como mulher adora reclamar”. Lembra-se das queixas mais usuais: ela não gostava que ele deixasse a barba grande, que tivesse mania discutir até com o dono da locadora por não ter o mais recente lançamento e que gostasse de andar de calça jeans e Havaianas.

Ela faz a mesma pergunta. Pedro não gosta de falar de trabalho, talvez por medo de desdém alheio. Então, diz apenas que está tudo ótimo e que há um novo projeto de uma empresa pública para promover o minério de ferro brasileiro no Mercosul. A menina deseja sorte. O garçom chega com o cardápio.

Antes, Pedro costumava roubá-lo e decidir pelos dois. Agora, porém, espera pacientemente sua escolha. Ela passa os olhos, fica em dúvida, filosofa sobre a diferença entre lula a doré e mariscos, pergunta ao garçom se o salmão é realmente macio. Pedro, aproveitando que o homem da gravata borboleta está à mesa, pede nhoque ao sugo, para adiantar. Ela então diz: “Ah, quero o mesmo”.

Pedido feito, conversa novamente à mesa. “Está apaixonado por alguém?”, indaga a menina de cabelos agora curtos. Pedro assusta-se com a pergunta direta. E, pior: não sabe qual é a resposta certa. A questão desestabiliza toda sua tática, que era a de parecer leve no começo e, devagarzinho, ir seduzindo-a. Desconcertado, diz que se envolveu com uma menina de Curitiba, mas que não deu certo.

Com medo, sente-se na obrigação de fazer a mesma pergunta, apesar de não querer saber a resposta. Ele se lembra que, há duas noites, teve um pesadelo, que o fez acordar com os olhos arregalados. Nele, sua amada conversava consigo na cama. Segurando firme sua mão, dizia: “Eu estou apaixonada por outro cara. Muito. E quero me casar com ele, constituir família. Ele mora em Bauru. Estou me mudando para lá, Pedro, e nada vai me impedir”. Além do susto, pensa até agora por que seu inconsciente escolheu Bauru, já que a única coisa que conhece desta cidade do interior é o Noroeste, o pequeno time de futebol.

Mas não se contém. “E você? Está apaixonada por outro?”. Ela sorri, balança a cabeça como se reprovasse um pouco a pergunta e manda: “Para que quer saber?”. “Simplesmente porque você também me perguntou. Quis tornar o papo recíproco, ué”. Pedro, que sempre costuma se enrolar em momentos tensos, sente que, enfim, conseguiu dar uma boa resposta.

“Ah, Pedro. Vamos mudar de assunto, tudo bem? Sei que você é muito curioso. Se eu responder, não vai mais parar de perguntar”. E a curiosidade – ainda mais a que pode fazer mal – realmente é uma característica do publicitário. Resolve mudar o tema, mas não sabe mais sobre o que conversar. Lembra como a conversa fluía fácil antigamente. Como passavam noites inteiras falando mais do que o Milton Neves aos domingos, enquanto ela dava gargalhadas. Como música, futebol, animais e até tênis de mesa eram assuntos para horas. Agora, sente-se como se estivesse recebendo um chefe de estado. Aquela mesa parece maior e mais larga do que quando namoravam. A menina, com quem tinha tanta intimidade, soava quase como uma semi-conhecida. Era mais uma alheia naquele bar em que ele sempre odiou os freqüentadores, mas que costumava ir por sua causa.

Meio desconfortável, Pedro abaixa o olhar enquanto a menina o encara firmemente. Vira-se para o lado para escapar daqueles olhos castanhos. Vê pessoas entrando. Uma moça de uns 30 e poucos anos, gorda, com um decote enorme em um vestido todo vermelho entra no bar. Uma loira, baixinha, sem apelo sexual algum, segue atrás. Elas já entram com sorrisos largos, como se estivessem no ambiente para caçar homem. No balcão, estão quatro presas (ou predadores) de gravata, sendo dois semi-carecas, falando alto sobre como a Juliana Paes “tem cara de puta”. Pedro despreza os dois grupos. Mas, por estar naquela situação embaraçosa, sentindo-se paralelo ao mundo normal, sente vontade de formar um quinteto com os prováveis gerentes de novos negócios, preocupar-se somente com as quedas da Bovespa e sentir-se sinceramente a fim da gorda de vermelho. Ao menos assim se sentiria confortável. E feliz.

“Pára de ficar prestando atenção nos outros!”, brada a chefe de estado. Pedro respira fundo, olha para o outro lado e percebe o garçom equilibrista vindo com os dois nhoques. Prefere manter-se mudo até o prato chegar. Ela ainda pede um vinho, enquanto o rapaz prefere uma caipirinha de abacaxi. Os dois comem rápido.

Ao fim do jantar, a menina diz: “Nossa, estranho a gente falar tão pouco, né? Posso citar Chico? Realmente é desconcertante rever o grande amor”. A sugestão de que ele ainda era seu grande amor, que ele esperou por quatro meses, inacreditavelmente não faz efeito algum. Ele sorri enquanto pensa: “Desconcertante é não reconhecer o grande amor”, e continua tomando a caipirinha, cada hora mais aguada.

Não reconhecer a menina que tanto tomou conta da sua cabeça é realmente desconcertante, e lembra de diversos momentos destes quatro meses. No começo do término, em que sentia que aquele era o maior amor do mundo e estava convicto de que a dor jamais passaria. Pouco depois, quando tinha certeza de que o certo era voltar, e que era absurdo somente ela não perceber essa verdade absoluta. Tinha certeza que seriam extremamente felizes. Quando dormia ao lado do celular e rezava para Santo Expedito, Santo Antonio, Yemanjá e para Deus e o diabo para aquele troço vibrar. O que sentia ao ouvir a seleção musical que batizou como “a mais triste do mundo”, que continha “Não fala de Maria”, “Passarim” e “Samba do grande amor” como carros-chefes. Na mesa cada vez mais quilométrica, fita a menina. Ela diz que precisa ir embora, pois tem de acordar cedo amanhã. Também o convida para se reverem, talvez para assistir a um filme no cinema. Ele balança a cabeça afirmativamente. A ex-amada pede a conta. Pedro sorri.