6 de maio de 2014

Explicador do povo brasileiro

Bem humorado e carismático, Darcy Ribeiro foi um dos intelectuais mais importantes da história do
País e figura decisiva para desnudar a alma nacional. Na teoria e na prática. O mineiro de Montes
Claros dedicou boa parte de sua trajetória à causa indígena e à educação do povo. Viveu em tribos e,
em 1961, redigiu o texto da criação do Parque Nacional do Xingu. Foi o criador e o primeiro reitor
da Universidade de Brasília. Entusiasmado pela política, tornou-se ministro da Educação e, em seguida, chefe da Casa Civil de João Goulart. Sabia que era pela política que teria condições de revolucionar o ensino nacional. O golpe militar de 1964 interrompeu esse sonho. Na volta do exílio, como vice-governador do Rio, criou os Centros Integrados de Educação Pública, CIEPs, escolas de educação integral que se tornaram modelos. Pouco antes de morrer, em 1997, publicou obra-prima fundamental para entender o Brasil: O Povo Brasileiro, fruto de um trabalho de mais de 30 anos. Na edição de comemoração de 15 anos do Almanaque Brasil, decidimos resgatar livros, entrevistas e artigos de Darcy para criar uma entrevista póstuma com uma das personalidades mais conhecedoras e entusiasmadas pelo Brasil de que se tem notícia. Uma entrevista com o homem que tinha uma certeza inabalável: “Uma das coisas mais belas do mundo foi a aventura do Brasil fazer a si mesmo”.




O que mais chama a sua atenção no Brasil e no brasileiro? 
Este é um povo que constitui um novo gênero humano. Não tem novidade nenhuma fazer a Austrália ou o Canadá, por exemplo. Basta pegar um bocado de ingleses e escoceses, jogar num terreno vazio que eles fazem uma Inglaterrazinha sem graça. Mas fundir herança genética e cultural indígena, negra e europeia num
gênero humano novo, numa coisa nova, que nunca houve, essa é a aventura brasileira. Nós
fizemos um povo. Um povo capaz de herdar 10 mil anos de sabedoria indígena, de adaptação ao
trópico e fazer uma civilização tropical. Somos a nova Roma. E por que nova Roma? Porque somos
a maior massa latina. Nós somos melhores, porque lavados em sangue negro, em sangue índio,
melhorado, tropical. Os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente,
pertencente a uma mesma etnia. A convicção a que chego é que uma das coisas mais belas do
mundo foi a aventura do Brasil fazer a si mesmo.

O que falta para o Brasil alcançar toda a sua potencialidade?
Uma das coisas é que temos que dar um jeito nessa classe dominante medíocre. É uma figura terrível a brutalidade, a incapacidade e a mediocridade dessa classe. Aqui o que ela fez é enriquecer e ter vantagens para si própria, ainda hoje. O Brasil moeu e liquidou seis milhões de índios e 12 milhões de negros africanos para quê? Para adoçar a boca dos europeus com açúcar, para enriquecê-los com o ouro de Minas Gerais. A nossa classe dominante tem que aceitar que o Brasil realize suas potencialidades de uma nova civilização, de uma nova Roma.

O País foi formado por indígenas, portugueses, africanos e, depois, por imigrantes de todos os 
cantos. Qual foi o primeiro grupo a sentir-se brasileiro de fato?
O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndio mestiço na carne e no espírito, que não podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais americanos – que ele desprezava –, nem com os europeus – que o desprezavam –, e sendo objeto de mofa dos reinóis e dos luso-nativos, via-se
condenado à pretensão de ser o que não era e nem existia: o brasileiro. Através dessas oposições e de um persistente esforço de elaboração de sua própria imagem e consciência como correspondentes a uma entidade étnico-cultural nova, é que surge, pouco a pouco, e ganha corpo a brasilianidade.

Como definiria a importância da cultura africana para a criação do Brasil?
Toda a cultura brasileira está impregnada dessa herança africana que se expressa com maior vigor nas áreas onde o negro mais se concentrou. Às vezes, é tamanha, que faz da Bahia, do Rio de Janeiro e de Minas
verdadeiras províncias culturais negras, nas quais a criatividade africana se expressa gloriosamente. O Carnaval do Rio, o candomblé da Bahia, o culto a Yemanjá, são, acho eu, as matrizes mais vigorosas da cultura brasileira. E vão continuar sendo, porque neles a negritude não é um folclore ou uma mera sobrevivência cultural. São criações de comunidades morenas viventes que perpetuam seus valores ancestrais africanos, precisamente porque os vivem e os transformam continuamente.

O senhor viveu em várias tribos indígenas e ajudou a criar o Parque Nacional do Xingu. O 
que mais o fascina na cultura indígena?
Meditando, agora, sobre esse meu sentimento de fascinação, tantos anos depois, descubro que me encantava nos índios, primacialmente, sua dignidade, inalcançável para nós, de gente que não passou pela mó da estratificação social. Não tendo sido nem sabido, jamais, de senhores e escravos, nem de patrões e empregados, ou de elites e massas, cada índio desabrocha como um ser humano em toda sua inteireza e individualidade. Pode, assim, olhar o outro e ser visto por todos como um ser único e irrepetível. Um ser humano respeitável em si, tão só por ser gente de seu povo. Creio que lutamos pelo socialismo por nostalgia
daquele paraíso perdido de homens vivendo uma vida igualitária, sem nenhuma necessidade ou possibilidade de explorar ou ser explorados, de alienar-se e de ser alienados.

O senhor defende que o Brasil deve ter um socialismo próprio, um "socialismo moreno". 
Como se daria esse sistema?
A posição socialista é a posição dos que querem passar o Brasil a limpo, no sentido de fazer com que o Brasil se torne habitável, para que todos os brasileiros tenham os mínimos indispensáveis. Mínimos a partir dos quais nós passaríamos a existir como povo civilizado entre outros. Esse mínimo é o socialismo brasileiro. E um socialismo brasileiro surgirá de nossa história, com a nossa carne e com a nossa cor, morena. Um socialismo brasileiro começa por assumir o povo moreno que nós somos, mas sobretudo a nossa pobreza. Assumir essa pobreza sabendo que ela dá lucro para muita gente. Muita gente quer que o país continue assim. Nós somos contra isso.

“NÃO TEM NOVIDADE FAZER A AUSTRÁLIA OU O CANADÁ. BASTA PEGAR UM
BOCADO DE INGLESES, JOGAR NUM TERRENO VAZIO, QUE ELES FAZEM UMA
INGLATERRAZINHA SEM GRAÇA. NÓS FIZEMOS UM POVO.”

 O senhor poderia ter passado a vida apenas como intelectual. Por que decidiu arriscar-se na 
vida política?
Política é a atividade humana fundamental. É aquilo que move o destino humano. É o que define o que vai acontecer com comunidades. É vitalmente importante. Há países que deram certo, por coincidência da história ou por competência deles, que não confiam em intelectuais. A Inglaterra não dá a menor confiança para intelectual, nem para sociólogo, antropólogo ou psicólogo. A Alemanha e os Estados Unidos também não. Mas os países que não deram tão certo tem que dar um pouco de atenção.

Por isso a sua crítica aos acadêmicos pouco afeitos à política?
A Escola de Sociologia e a Faculdade de Filosofia nos tiravam da revolução e nos metiam a estudar arte plumária kaapor ou a reconstituir as guerras tupinambá de antes de 1500. Dopados, doutrinados sem o saber, estávamos empolgadíssimos com as tarefas que nos levariam a um cientificismo que se esgotava como uma finalidade em si, desligado de qualquer problemática social e nacional.

Mas esses estudos citados, por exemplo, não são importantes? 
Acho muito legítimo estudar qualquer tema só movido pelo desejo de saber. Afinal, nosso ofício de cientistas tem por fim ampliar e melhorar o discurso humano sobre a natureza das coisas, inclusive de si próprios. O que desejo assinalar é o caráter alienador de uma escolástica científica que fechava nossos olhos para o contexto circundante, que nos desatrelava do ativismo político para fazer de nós futuras eminências intelectuais e acadêmicas. A soma de ativismo político com a herança brasilianista e o interesse pela literatura impediram que eu me convertesse num acadêmico completo, perfeitamente idiota. Desses que só servem para por ponto e vírgula nos textos de seus mestres estrangeiros.

Considera O Povo Brasileiro a sua maior obra?
Escrever esse livro foi o desafio maior que me propus. Por mais de 30 anos eu o escrevi e reescrevi, incansável. Nunca pus tanto de mim, jamais me esforcei tanto como nesse empenho, sempre postergado, de concluí-lo. Ultimamente essa angústia se aguçou porque me vi na iminência de morrer sem concluí-lo. Fugi do hospital aqui para Maricá, para viver e também para escrevê-lo. Se você, hoje, o tem em mãos para ler, em letras de forma, é porque afinal venci, fazendo-o existir. Por que só agora o retomo, depois de tantos,
tantíssimos anos, em que me ocupei de tarefas mais variadas, fugindo dele? Não sei! Não foi para descansar, certamente. Foi para me dar outras tarefas. Entre elas, a de me fazer literato e publicar quatro romances. Nessa longa travessia, também politiquei muito, com êxito e sem êxito, aqui e no exílio, e me dei a fazimentos trabalhosos, diversos. Inclusive vivi, quase morri.

Quem são seus ídolos? 
Eu tenho dois alter egos. Um, meu santo-herói, Cândido Rondon. Outro, meu santo-sábio, Anísio Teixeira. Cada qual de sua causa, que foram ambas causas minhas. Foram e são: a proteção aos índios e a educação do povo. Em educação, Anísio representou para mim o que fora Cândido Rondon em outro tempo e dimensão. Baixinho, irrequieto, falador, mais cheio de dúvidas de que de certezas, de perguntas que de respostas. Anísio me ensinou a duvidar e a pensar. Ele dizia de si mesmo que não tinha compromisso com suas ideias, o que me escandalizava, tão cheio eu estava de certezas. No caso de Rondon, fiquei galvanizado instantaneamente por sua bela figura índia, pela dignidade de sua fisionomia, pela energia de seu olhar, pela naturalidade de seu mando. Fiquei atado a Rondon pela vida inteira.

“TENHO DOIS ALTER EGOS. MEU SANTO-HERÓI, CÂNDIDO RONDON, E MEU
SANTO-SÁBIO, ANÍSIO TEIXEIRA. CADA QUAL DE SUA CAUSA, QUE FORAM E SÃO
MINHAS: A PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS E A EDUCAÇÃO DO POVO.”

 Como resumiria sua atuação política pela educação?
Deixe-me dizer aqui que me considero um educador bem-sucedido. Não só por méritos meus. Mas porque soube encontrar poderosos com a grandeza de adotar minhas ideias. O primeiro foi Jânio Quadros, convencido por Anísio e por mim a fazer da educação a meta fundamental de seu governo. Chegamos a detalhar um belo programa para ele, que não cumpriu tudo sabem por quê. Mais êxito tive com Leonel Brizola, que comprou a mais velha ideia e sonho dos educadores brasileiros, que era criar aqui a escola primária que todo o mundo tem, a de tempo integral, sem recair nessa perversão que são as escolas de turno. Junto com Brizola fiz 500 CIEPs, em que poderão ser educadas 500 mil crianças, que representam mais de uma terça parte do alunado do estado do Rio.

O senhor nunca casou ou teve filhos, mas sempre levou fama de conquistador. Considera boa 
a opção?
Cada pessoa devia amar todos os amores de que fosse capaz. Sucessivamente, em amores apaixonados, cada um deles vivido e fruído como se fosse eterno. Para amar é que eu quisera viver mais e mais. O amor é a mais funda, mais sentida e mais gozosa e mais sofrida das vivências humanas. Aos olhos das moças de hoje, sou um velho. Sou mesmo e isso me dói muito demais. Quisera o impossível de ser confundido com a rapaziada de agora, felizarda.

Acredita em Deus? 
É claro. Seria uma soberba, uma prepotência não acreditar. Eu posso dizer que não posso provar que Deus existe, posso dizer que Deus está em dívida comigo, tem que me acender a fé, mais veemente. Não sou religioso praticante. Por isso Deus tinha que me iluminar o peito com a fé. Fé não é a razão que leva. Fé militante, combativa, é Deus que ilumina no coração dos homens.

Por falar em soberba, já houve quem o chamou de vaidoso... 
É verdade. E daí? Estou cheio de razões do que fiz em minha vida inteira para orgulhar-me de mim. Confesso que necessito e gosto demais de elogios. Sobretudo dos redondos, retumbantes, como o de Márcio Moreira Alves dizendo "que a coisa mais parecida com gênio que existe no Brasil é o Darcy". Ou dos que recebi de Adolpho Bloch, Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Gabriel García Márquez. Gosto também dos elogios menores, de mulher dizendo que sou bonito e gostosão. De homens me ouvindo com admiração. Gosto até das adulações. Um bom puxa-saco é coisa apreciável.

Olhando para trás, qual o balanço que faz de sua trajetória?
Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem me venceu.

Como vislumbra o futuro do Brasil?
O Brasil já é a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio de tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso auto-sustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.