Sempre que ouvia a clássica Último Desejo, de Noel Rosa e Vadico (aliás, sinto que já falei sobre esse samba há pouco tempo) na gravação de Aracy de Almeida, me surgia uma dúvida importante: afinal, por que ela canta “pois meu último desejo você não pode negar” em vez de “mas meu último desejo você não pode negar”?
A interpretação de Aracy é rara, é bonita, é precisa. Mas esse “pois” irrita, porque muda completamente o sentido do verso, que não pretende indicar uma conseqüência.
Achava que Noel tivesse escrito dessa maneira. Mas, apesar dos coloquialismos de suas composições, não era dado a esses desvios lingüísticos. Será que escrevera assim por estar sofrendo pela Céci?
Achava que Noel tivesse escrito dessa maneira. Mas, apesar dos coloquialismos de suas composições, não era dado a esses desvios lingüísticos. Será que escrevera assim por estar sofrendo pela Céci?
Enfim, descobri a causa após folhear o livro Noel Rosa: Uma biografia (João Máximo e Carlos Didier) que encontrei na redação. E a resposta é a mais óbvia possível: Aracy cantou errado.
Para desgosto de Noel, é bom saber. O ano era 1936. O compositor estava com a saúde debilitada e recebeu, em sua casa, a visita de um amigo, que lhe deu a notícia: “Acabei de ouvir a Aracy cantar Último Desejo no rádio”.
Para desgosto de Noel, é bom saber. O ano era 1936. O compositor estava com a saúde debilitada e recebeu, em sua casa, a visita de um amigo, que lhe deu a notícia: “Acabei de ouvir a Aracy cantar Último Desejo no rádio”.
“Mas, como? Ela nem aprendeu o samba direito”, respondeu Noel. “É, eu percebi”, retrucou o amigo.
Além de “pois meus último desejo”, informou que também trocou o “o meu lar é o botequim” para “o meu lar é um botequim”. Noel ficou bravo. Disse que nunca mais daria uma composição sua para ela cantar. Mas, pouco depois, e por estar muito doente, esqueceu o assunto.
“Calma!”
E esta não foi sua primeira briga gramatical com a Dama do Encantado. Dois anos antes, houve outra discussão devido ao samba O Maior Castigo que eu te Dou, que estava prestes a ser gravado por ela.
“Calma!”
E esta não foi sua primeira briga gramatical com a Dama do Encantado. Dois anos antes, houve outra discussão devido ao samba O Maior Castigo que eu te Dou, que estava prestes a ser gravado por ela.
Aracy insistia em cantar “não há ninguém mais calma do que eu sou”. Ela argumentava que era uma mulher, afinal.
“Mas, Aracy, este “calmo” depois de ninguém não varia”, explicando que era um pronome indefinido, que não acusa gêneros, e portanto devia cantar "não há ninguém mais calmo...".
“Não interessa! Não vou cantar como se fosse homem”, respondeu.
“Não interessa! Não vou cantar como se fosse homem”, respondeu.
Já bravo, Noel insistia: “Mas o certo é calmo”.
“Calma!”.
“Calmo!”.
“Calma!”.
“Calmo!”.
Um amigo contemporizou os ânimos e explicou que Noel estava certo. Aracy morreu sem concordar.