26 de fevereiro de 2012

Gabriel Cavalcante

O samba ressurgiu de uns 15 anos pra cá, desde que jovens cariocas retomaram o bairro da Lapa com pandeiros, cuícas e violões e alastraram as tradições do gênero musical para todos os cantos do País. Passada a sensação inicial, uma questão ficou difícil de liquidar: como compor samba contemporâneo sem esquecer o passado e, ao mesmo tempo, sem saudosismo à toa. Muita gente tentou e, para mim, poucos conseguiram. Uma dessas exceções é o tijucano Gabriel Cavalcante, 25 anos, também conhecido como Gabriel da Muda, que no início de 2011 lançou o ótimo O Que Vai Ficar Pelo Salão, com participação do violonista Patrick Ângelo e dos compositores Roberto Didio e Renato Martins.

Gabriel também é uma das figuras que comandam o Samba do Ouvidor, roda de samba que ocorre duas vezes por mês nas esquinas das ruas do Mercado e do Ouvidor, no centro do Rio. Toda a história começou em em 2005 quando, com apenas 19 anos, passou a fazer parte do Samba do Trabalhador, comandado por Moacyr Luz.

Eu o conheci pessoalmente há uns 4 anos em Copacabana, durante o carnaval, e tomamos uma cerveja juntos. Mas só o vi tocar no ano passado numa roda em São Paulo. O seu vozeirão e carisma impressionam e ajudam a revigorar o gênero musical mais importante do Brasil.

Resolvi, então, fazer uma entrevista com o músico. Gabriel, que considera-se um “comunista não praticante” e “fã absoluto do Lula”, fala sobre sua relação com o bairro da Tijuca, sua visão sobre como compor samba contemporâneo e cita seus músicos preferidos além-samba. Ele também afirma que vale a pena se manter fiel aos seus princípios musicais: “Faço música pela música. Meu radicalismo é não abrir mão dos meus ideais por tentações comerciais. Quando chego num lugar como Maceió, Florianópolis ou São Luis e percebo que tenho admiradores do meu trabalho, vejo que tudo vale a pena”.

Fale sobre sua relação emocional com a Tijuca. O bairro influencia seu modo de fazer música?
A Tijuca é o meu lugar. Nasci por aqui. Fui criado na rua Uruguai, onde moro até hoje. Aprendi a amar este lugar. Foi andando pela Muda que comecei a ser o bairrista que sou. Por lá, ensaiava o Nem Muda Nem Sai de Cima, bloco fundado por Moacyr Luz, Aldir Blanc e outros boêmios do bairro. Quando pequeno, ia pra lá sozinho, ver o movimento, o samba, e tentar entender um pouco aquele universo. Via naqueles ensaios o amor que as pessoas tinham pela Tijuca, e descobri que era o mesmo que sentia. Me achei ali, na Garibaldi, rua onde bebi minha primeira cerveja. A Tijuca infuencia em tuda na minha vida. Convivi com algumas figuras como os saudosos Basile e Diniz , além de Greg, Queiroz e tantos outros. Só gente da antiga. Cansaram de puxar minha orelha quando viam algo de errado. Depois fui conhecendo pessoas da minha faixa etária que também tinham esse amor, e são essas pessoas que faço questão de conviver diariamente. E foi no Bar do Momo onde sentei pela primeira vez com meu cavaquinho para tocar com os coroas.

Como começou a ser conhecido no samba carioca?
Até então, minha vida no meio do samba se resumia a esses encontros na Tijuca. Depois toquei durante algum tempo num grupo, que se apresentava pelas bandas da Lapa, mas não durei muito tempo. O acontecimento mais importante, que me deu visibilidade e abriu de vez as portas para mim no samba foi o Samba do Trabalhador, do qual faço parte desde a primeira roda, em maio de 2005.

Como foi o processo de criação do Samba do Ouvidor, roda de samba da qual você faz parte hoje?
Aconteceu meio que naturalmente. Sentíamos falta de um lugar para tocarmos os sambas sem a preocupação de agradar o empresário ou não, e nada mais justo do que fazer um movimento desse na rua, de graça, para qualquer um chegar. A rua do Ouvidor é uma rua histórica no Rio, que casou perfeitamente com os sambas que cantamos, históricos, porém pouco lembrados por aí.

Quais figuras foram importantes para a criação do seu primeiro CD? Houve muitos parceiros no projeto?
Em primeiro lugar meus irmãos Roberto Didio e Renato Martins, que conheci em 2007, e desde então não saímos mais separados. Chamei outro querido amigo, Patrick Ângello, violonista de primeira linha que caminhou comigo nas primeiras jornadas musicais profissionais no Rio, antes mesmo do Samba do Trabalhador. E claro, meu fiel Moacyr Luz, incentivador da minha carreira, parceiro de profissão e de vida.

 Há uma dificuldade de fazer samba com temática contemporânea?
Acho que sim. Mas já dizia Noel Rosa de Oliveira: ...O que passou, passou, ficou pra trás
Cantar samba é diferente de produzi-lo. Vejo hoje em dia pessoas fazendo samba falando de coisas que provavelmente nem nossos pais viveram. Com muito respeito a todos, esse tempo já passou. O que tinha que ser feito já foi. Cantar sambas antigos é reverenciar e manter um hábito vivo, porém fazer sambas com temáticas de 60, 70 anos passados é desconhecer e ignorar o presente.

Alguns pontos tradicionais de samba no Rio, como a Lapa, estão passando por um processo de “modernização”, com bares sofisticados e tal. Como isso atinge o samba que é feito por lá?
Atinge muito, e de muitas formas. Em primeiro, o samba não é mais a estrela nem o foco principal. Os empresários estão interessadoa nos seus próprios bolsos. Em segundo, o músico deixou de ter liberdade, pois se canta algo que não agada o empresário, corre o risco de não receber e ser mandado embora do local. Em terceiro, os músicos mais experientes acabam se afastando, e naturalmente e qualidade dos sambas feitos por lá cai.

O estilo musical entrou fortemente na moda no começo dos anos 2000, e agora está menos em evidência. Qual sua impressão sobre esse processo?
Não acho que esteja tanto fora de evidência, mas acho esse declíneo natural. No início todos vão, pois é moda, depois ficam os apreciadores, os sambistas, que mesmo sem tocar um instrumento estão ali, cada um contribuindo do seu jeito.

Você costuma vir para São Paulo. Sob o ponto de vista do samba, o que pensa da cidade?
Gabriel e Moacyr Luz
Não vejo muita diferença pro Rio. O Rio tem essa ligação natural com o samba, porém vejo São Paulo lado a lado em termos de movimentos, rodas em ruas, praças... Fora isso, o profissionalismo do paulista é muito positivo.

Além de samba, o que gosta de escutar?
Ouço muito Nana, Dori e Danilo Caymmi. A obra não sambística dos ídolos Aldir Blanc e Paulo Cesar Pinheiro. Ivor Lancelloti. Gostei muito do último CD do Chico. O da Amelia Rabello está impecável também. Vez ou outra coloco algo cubano para ouvir. Compay, Ibraim, El Inegualabile Bola de Nieve. Piazolla, Michel Legrand e Piafh são lembrados também.

Você se diz um sujeito radical, e que foi esse radicalismo que te levou até onde você está. Explique melhor.
Faço música pela música. Meu radicalismo é não abrir mão dos meus ideais por tentações comerciais. Muitos não entendem, principalmente meu pai e minha mãe (risos), porém quando chego num lugar como Maceió, Florianópolis ou São Luis, e percebo que tenho seguidores e admiradores do meu trabalho, vejo que tudo vale a pena.

Pra fechar: você tem um sambista preferido? E por quê?
É difícil falar num só, mas vou de Candeia, pela postura e por ter rompido barreiras. Candeia foi muito além do sambista e compositor.


24 de fevereiro de 2012

As pataquadas do “branco mais negro do Brasil”

Há poucos anos, Caetano Veloso causou uma certa polêmica ao afirmar que Feitiço da Vila, de Noel Rosa e Vadico, era uma canção racista. Me dou a mesma liberdade do compositor baiano para sugerir que outro grande nome da música brasileira, Vinicius de Moraes, também deixou a desejar algumas vezes sobre o tema racial. Veja: não estou dizendo que Vinicius era racista. Mas, por mais estranho que a afirmação soe inicialmente, me parece ser alguém bastante lugar-comum sobre o tema. E ser lugar-comum na questão por estas terras é ser racista.

A minha “prova” é uma entrevista que o Pasquim fez com Paulinho da Viola em agosto de 1970. Em dado momento, bem no começo da entrevista, o escritor Luiz Carlos Maciel pergunta a Paulinho, lembrando-se de uma entrevista recente com o poeta e compositor Capinam:

Maciel - Na entrevista com Capinam, ele disse que o Gilberto Gil era o primeiro cara que fazia música negra no Brasil. O que é que você acha dessa opinião?

Paulinho - Eu acho que a Clementina de Jesus faz música negra.

Eis que Vinicius intervém. Um dos inventores da bossa nova - estilo conhecido por ser dos brancos da zona sul do Rio de Janeiro - sentencia que falar sobre música negra se trata de “racismo musical”. E que Gilberto Gil teria uma "natureza racista". Já Paulinho tenta contemporizar, mas não deixa de afirmar a importância da valorização da cultura negra. A entrevista se desenrola assim:

Vinicius - O jazz branco é caudatário [simpatizante] da música negra, mas depois se misturou tudo, não há uma separação de música branca e música negra. Isso é racismo musical. O que eu quero dizer é o seguinte: eu acho o Gil um tremendo compositor, mas ele tem esse racismo, então isso se manifesta através da música dele. Eu acho que é um problema da natureza dele.

Paulinho - Você vê alguma conotação de racismo no momento em que se levantam certos problemas de uma estética negra, por exemplo?

Vinicius - Não vejo desde que não seja levantado nos termos dos Panteras Negras americanos, aí é racismo negro mesmo.

Paulinho - Você não acha que esse negócio dos Panteras Negras tem um peso que coloca em segundo plano esse problema do racismo?

Vinicius - Nunca houve um ser mais humilhado que mulher e nem por isso elas são racistas.

Paulinho - Eu acho que aí há um negócio diferente. No momento em que você tenta fazer certas afirmações em termos de uma cultura negra, de certos valores negros, e tenta afirmar isso como valores absolutos, como uma coisa que tem que ser porque não foi, eu acho que é racismo. Mas no momento em que ele tenta afirmar seus valores, o negócio do racismo fica em segundo plano.

Vinicius - Eu acho que quanto mais o negro se aproximar de uma cultura, menos racista ele deve ser. É a cultura que aproxima as pessoas e resolve os problemas. Até agora não tem resolvido nada, mas nossa esperança é que resolva.

Paulinho - Essa afirmação desses valores que você entende como uma posição racista, ela é racista até certo ponto. Dependendo das proposições, das coisas que estão acontecendo, ela até pode ser uma posição válida e importante, ela pode não ser uma posição racista.

Eis que Vinicius encerra a discussão com “chave de ouro”:

Vinicius - Eu acho que o grande problema do racismo se resolve na cama, sabe?

A partir desse ponto a conversa toma outro rumo, sem explicitar o que Vinicius quis dizer com “resolver o racismo na cama”.

Mas as evidências não param por aí. A minha amiga e pesquisadora sobre relações raciais Lia Vainer Schucman recentemente me chamou atenção, indignada, sobre os versos finais de Samba da Bênção, em que o poeta versa sobre o samba: Se hoje ele é branco na poesia / Ele é negro demais no coração. Ou seja, a poesia, a parte intelectual, reclamou Lia, para Vinicius ficava sob responsabilidade dos brancos. Já aos negros cabiam apenas o lado emocional.

Não é pouca gente que conheço que afirma ver no poeta não um exaltador da cultura negra, mas sim um folclorizador. Se essas frases da entrevista viessem da boca de qualquer outro sujeito do Pasquim, seria mais fácil entender. Falar essas coisas eram de certo modo naturais na década de 1970. Mas é difícil aceitar vindo do “branco mais negro do Brasil”.

9 de fevereiro de 2012

O medo de se chamar saudade

Certa noite, Nelson Cavaquinho acordou assustado e suando frio. Havia sonhado que morreria exatamente às três horas daquela madrugada. Olhou para o relógio e os ponteiros marcavam 2h55. Não dormiria mais. Passou a noite toda atrasando os ponteiros, para que não chegasse o horário fatídico. O medo da morte era a característica mais evidente da personalidade do sambista. E marcou uma das obras mais singulares da música brasileira. Morte, envelhecimento, melancolia, religiosidade e desamores foram os temas que tornaram o compositor carioca um dos mais importantes músicos do Brasil.

Ele é o poeta da morte”, define o crítico musical Ricardo Cravo Albin. Mas o compositor também entrou para a história por sua forma única de tocar violão, usando apenas o indicador e o polegar da mão direita para vibrar as cordas do instrumento. O resultado era um som rústico e rascante, tal qual sua voz. As letras – ora feita por ele, ora com parceiros – impressionavam pela profundidade. “O meu grande mestre em samba é o Nelson Cavaquinho. Ele é o maior poeta popular do Brasil”, desmanchava-se Baden Powell.

De soldado a sambista
A trajetória de Nelson Antônio da Silva, nascido em 1911 no bairro da Tijuca, foi marcada pela pobreza. O garoto precisou largar os estudos na terceira série primária para trabalhar. Nas horas vagas, divertia-se ao ver o pai e o tio entoando choros e outros gêneros da época. Para acompanhar os mais velhos, improvisou o seu primeiro instrumento, uma caixa de charutos com alguns arames esticados. Mais tarde, já no meio de boêmios e malandros, passou a tomar gosto pelo cavaquinho. Depois migraria para o violão, mas o apelido que ganhou em suas primeiras rodas de samba o acompanharia a vida toda.
Ao fazer 18 anos, entrou para a Cavalaria da Polícia Militar. Uma das incumbências do jovem soldado era patrulhar o morro da Mangueira. De tanto subir e descer o morro no lombo de um cavalo, tornou-se amigo dos bambas do lugar, como Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda. Até que, por absoluta incompetência para correr atrás de bandidos, pediu baixa da corporação.

Longe das obrigações como policial, passou a compor sem parar. Porém, as dificuldades financeiras o obrigavam a vender seus sambas por qualquer ninharia. Foram muitas as composições negociadas. Até donos de bar e gerentes de hotel entraram para a história da música brasileira em troca de uma cachaça a mais ou de um teto para o compositor dormir.

A vida de Nelson Cavaquinho ganhou outro rumo ao conhecer Guilherme de Brito, no início dos anos 1950. O compositor seria seu mais importante parceiro. Uma parceria de fato. De acordo com o sambista Nelson Sargento, “foi Guilherme que deu uma nova direção para a vida de Nelson, que começou a beber menos e a compor mais”.

Tire o seu sorriso do caminho
Nelson e Guilherme era uma dupla de compositores de amargo lirismo, voltada para as pequenas tragédias do cotidiano e para o caráter efêmero da vida”, escreveu André Diniz, autor do livro Almanaque do Samba. O tema da morte era caro a ambos. “Eu falo tanto de morte que é para ela ficar longe de mim”, justificava-se Nelson. Os clássicos surgiam um atrás do outro: Folhas Secas, Quando Eu Me Chamar Saudade, Pranto de Poeta, Tatuagem e uma porção de outras. Para o poeta Manuel Bandeira, o verso inicial de A Flor e o Espinho mereceria figurar em qualquer antologia de grandes momentos da poesia brasileira: Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor.

Mesmo com sambas de alta qualidade, só na década de 1960 Nelson passou a ser conhecido no Rio de Janeiro. Foi quando começou a se apresentar no Zicartola, bar de Cartola e dona Zica, e chamou a atenção de novos artistas. Nara Leão gravou Pranto de Poeta; Elizeth Cardoso, Vou Partir.
Nelson passou a ser convidado constantemente para apresentações. A novidade não o empolgava muito. Certa vez, o convocaram para participar de um programa de tevê. Como estava sem muita vontade, recusou. O produtor disse que o cachê era bom, e ouviu como resposta: “Não tem por que me apresentar. Dinheiro não rima com nada”.

Foi só beirando os 60 anos que gravou o primeiro disco: Depoimento de Poeta. Depois lançaria mais dois. Em 1984, foi homenageado com o disco Flores em Vida, em que grandes artistas tratavam de reverenciá-lo. Teve dois anos para desfrutar as tais flores em vida. Na madrugada de 18 de fevereiro de 1986, encontrou-se com o momento que tanto temeu. Apesar do medo da morte, partiu com uma aparência serena. Deixou um repertório de mais de 600 canções e um vazio na música brasileira. Um artista que nunca se rendeu a temas fáceis para alcançar o sucesso. “Faço músicas só para tirar as coisas de dentro do coração. É assim desde o dia em que fiz o meu primeiro samba.”