9 de março de 2009

O que o baiano tem?

Seu estilo único, surgido não-sei-de-onde, impressionou desde as primeiras canções. Com composições originalíssimas, colocou a Bahia no imaginário coletivo dos brasileiros. Esteve nos dois momentos de internacionalização da música nacional. Era famoso pela "preguiça", pela vida devagar, sem aceitar a pressão da indústria fonográfica. Fez apenas 100 canções, mas tornou-se um mito em vida.

É um mistério da música brasileira: de onde surgiu o estilo singular de Dorival Caymmi? Desde as primeiras composições a questão perdura, sem ser devidamente elucidada. Ao ser perguntado se era influenciado pelo baiano, o compositor Chico Buarque respondeu: “Caymmi para mim é um caso à parte na música nacional. Ele é de tal modo despojado que é difícil imitá-lo, copiá-lo, fazer uma música a la Caymmi”.

Nascido a 30 de abril de 1914 em Salvador, Dorival passou a infância de olho no violão do pai, um músico amador. Aprendeu a tocar o instrumento sozinho, e com apenas 15 anos já tinha as primeiras composições. Logo passaria a se apresentar em programas da Rádio Clube da Bahia. Para descolar uns trocados, trabalhava no jornal O Imparcial.

Em 1937 embarcou em um ita rumo ao Rio de Janeiro, onde assumiu uma vaga de jornalista nos Diários Associados e se inscreveu num curso preparatório para a faculdade de Direito. Sem esquecer a música, que continuava compondo para enfrentar os programas de calouro.

Precisou de apenas um ano para conhecer o sucesso. A equipe de Banana da Terra já havia rodado as cenas iniciais do filme quando chegou a notícia. Por razões financeiras, Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso, não poderia ser usada. A produção tinha que providenciar nova música para Carmen Miranda.

Envolvido com o musical, o radialista Almirante lembrou do rapaz recém-chegado da Bahia. Dias depois o compositor de 24 anos apresentou O Que É Que a Baiana Tem? para Carmen. E ainda sugeriu que a Pequena Notável imitasse os trejeitos das baianas, gesto que se tornaria sua marca registrada.

O que a Baiana Tem, com Carmen Miranda

Com o sucesso, passou a atuar na Rádio Nacional. Na emissora conheceu a cantora Stella Maris, com que se casaria. A companheira estaria ao seu lado por toda a vida.

Baianos em seu caminho

A partir de 1939, Caymmi constrói uma longa lista de músicas tendo o mar como inspiração. Os ouvintes se impressionavam com a naturalidade com a qual os versos entravam na melodia. Alguns exemplos são Rainha do Mar, Promessa de Pescador, A Jangada Voltou Só. Os temas praieiros não se limitavam à música. Passou a se dedicar à pintura e ao desenho. Os cenários baianos eram a inspiração: pescadores, comunidades a beira-mar, as tradições populares.

A Jangada Voltou Só

Compõe também sambas-canção. Marina (...morena / Marina, você se pintou...) foi uma das mais famosas. Durante os anos 1940, torna-se grande amigo do conterrâneo Jorge Amado. Inspirado em sua obra literária, cria Modinha para Gabriela e É Doce Morrer no Mar.

Marina

Carmen havia sido responsável por levar a música de Caymmi para o mundo. A partir de 1959, um baiano toma esse papel: João Gilberto. Fã confesso de Caymmi, João grava Rosa Morena logo em seu disco de estreia. Era apenas o começo. Na fileira vieram Doralice, Você Não Sabe Amar, Acontece que Eu Sou Baiano... Parecia que as canções de Dorival haviam nascido sob o signo da bossa nova. A definição é de Caetano Veloso: "O grande esforço de modernização de João se apoiou na modernização sem esforço de Caymmi".

Doralice, com João Gilberto

Tornou-se também amigo de Tom Jobim, que exaltava sua inventividade. Para ele, Caymmi usava soluções harmônicas poucas vezes vistas antes da bossa. Ambos lançaram um disco nos anos 1960: Caymmi Visita Tom. Com direito a um magistral dueto em Saudade da Bahia: Ai, que saudade eu tenho da Bahia / Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia...

Saudade da Bahia

Queria ser um preguiçoso assim”

“Ao longo da carreira, Caymmi gravou cerca de 100 canções - pouco para tantos anos dedicados à música. Resultado: ganhou fama de preguiçoso. Negava-se a escrever sob pressão de gravadoras. Só uma vez assinou contrato, com a Odeon, em 1939. Pelo acordo, deveria gravar seis discos em dois anos. Não cumpriu. "É verdade que Caymmy compôs pouco mais de 100 músicas, mas todas são obras-primas. Quem é o compositor que pode se dar a esse luxo? Eu queira ser um preguiçoso assim”, defendeu Caetano.

É célebre a história da obra-prima João Valentão, que levou nove anos para concluir. O desfecho beira o sublime: E assim adormece este homem/ Que nunca precisa dormir pra sonhar /Porque não há sonho mais lindo / Do que sua terra, não há.

João Valentão, com Caetano Veloso

Outro caso que ilustra o ritmo de sua produção é o da música Adalgisa. Sempre mostrava a um amigo os primeiros versos (Que a Bahia tá viva ainda lá / Que a Bahia tá viva ainda lá). Ao ser questionado quando iria gravar, respondia: “Quando ficar pronta, quando ficar pronta...”. E assim foi durante anos. Até que um dia anunciou: “Terminei!”. Pegou o violão, empostou a voz e apresentou a obra completa: Com a graça de Deus, inda lá / Que a Bahia tá viva ainda lá / Que a Bahia tá viva ainda lá...

As canções rareavam ainda mais com o passar dos anos. Mas os filhos Dori, Nana e Danilo – além dos inúmeros amigos e admiradores – mantiveram a divulgação de sua obra. Em agosto do ano passado, seu coração baiano parou de bater. Homenagens em todo o País. O Brasil percebeu que perdia um compositor inigualável. E inimitável. Alguns anos antes, diante da pergunta a que creditava ter participado dos dois grandes momentos internacionais da música brasileira – a era Carmen Miranda e a bossa nova –, respondeu: “É questão de ser baiano”.