5 de setembro de 2013

"Quando alguém diz ‘nóis vai’ é que nós vamos. E vamos mesmo"

Sérgio Vaz precisou ultrapassar obstáculos invisíveis (e outros nem tanto) para mostrar que a periferia também gosta de se comunicar por meio de poesia. Há 12 anos comanda a Cooperifa, o sarau que mudou a rotina da zona sul de São Paulo com versos, rimas e literatura. 
“Para quem o pessoal da periferia precisa pedir autorização para escrever? Para a Academia Brasileira de Letras?”. É de forma provocativa que Sérgio Vaz, 49 anos, rebate aos que ainda insistem em achar estranho uma empregada doméstica, um lixeiro ou um mecânico dedicar um tempo do dia para colocar poesia no papel. Não há, porém, um pingo de ressentimento em sua voz. O homem que está à frente do sarau de periferia mais importante do Brasil há 12 anos nunca precisou pedir autorização a ninguém para escrever a própria trajetória. Apenas se impôs. 
O Sarau da Cooperifa ocorre toda quarta-feira no bar Zé Batidão, na zona sul de São Paulo, e é disputado. Costuma reunir 200 pessoas por edição. Já chegou a 500. Os microfones estão abertos a poetas de todos os estilos e níveis. O evento angariou o pessoal da região e também espectadores da classe média, que cruzam a cidade para ouvir o que eles têm a dizer. A Cooperifa ainda promove ações como exibições de filme, saraus em escolas públicas, apresentações de música e arte cênica. Tudo de graça. Pelo trabalho inovador, a instituição ganhou o prêmio Educador Inventor, concedido pela Unesco. 
Para Sérgio, o segredo do sucesso da Cooperifa é a simplicidade com a qual foi criada. “Para entrar no sarau, Jorge Amado, Adélia Prado, Pablo Neruda precisam tirar o sapato. A poesia que pediu licença para entrar na vida das pessoas. Não as pessoas pediram licença para ter acesso à poesia. A ordem se inverteu. No bom sentido, a poesia foi tratada como uma arte qualquer”. 
Hoje, há saraus inspirados na Cooperifa em lugares diferentes entre si como Salvador e Porto Alegre, Belo Horizonte e Arcoverde. “Nós não somos um movimento para escritores. Somos um movimento para criar leitores”, explica. 
Alimentos e livros
A infância de Sérgio Vaz foi muita parecida com a de outros jovens de periferia. Os poucos espaços que havia para desenvolver suas potencialidades era o campo de futebol, a rua e a igreja. No seu lar, porém, havia outro bem também valioso. “Apesar da simplicidade, na minha casa nunca faltou nem alimentos e nem livros”. Era observando o pai, dono de bar e leitor contumaz, que começou a achar que ler poderia ser algo bacana. Tinha 14 anos quando abriu o primeiro livro, Eram os Deuses Astronautas?, do suiço Erich von Däniken. A experiência não foi das melhores: “Não entendi nada”.  Seu pai observou o filho de livro aberto, se entusiasmou e resolveu comprar publicações infanto-juvenis para o garoto. Nascia um leitor. 
Um pouco mais velho – e mais experimentado na literatura –, resolveu achar um espaço para sua turma realizar apresentações artísticas, em literatura, música, dança, artes cênicas ou qualquer outra ideia que surgisse. Ao lado do amigo Marco Pezão criou a Cooperifa e convenceu o dono de uma fábrica abandona em Taboão da Serra, na grande São Paulo, a ceder o espaço. De forma improvisada, ocorreram os primeiros eventos artísticos. E os primeiros saraus. 
A “sede” da Cooperifa foi mudando de endereço até fincar bandeira no Zé Batidão, bar que havia sido do seu pai e de onde, na infância, costumava ficar atrás do balcão observando de forma curiosa os tipos que entravam no recinto, os homens solitários, os bêbados. “O bar, que era a minha senzala na infância, se tornou a minha libertação. As pessoas passaram a vir como se estivessem indo para Palmares, fugindo da mediocridade, do marasmo”. Desde então não houve uma única quarta-feira sem sarau.
Cinema na Laje
Quase 50 livros já foram publicados pelos freqüentadores da Cooperifa. Só de Sérgio são sete, todos elogiados pela crítica. Na trajetória também atestou que todo mundo gosta de poesia. Para ilustrar, se lembra da primeira visita que fez à Fundação Casa, ex-Febem, para levar poesia aos jovens da instituição. A primeira recepção foi gelada, com olhares pouco entusiasmados dos garotos. Sérgio perguntou: “Alguém aqui gosta de poesia?”, e apenas recebeu como resposta cabeças para a direita e para a esquerda. Foi quando pediu licença e começou a recitar Negro Drama, música dos Racionais: Negro drama / Entre o sucesso e a lama / Dinheiro, problemas, inveja / Luxo, fama / Negro drama / Cabelo crespo / E a pele escura / A ferida, a chaga / A procura da cura... No meio percebeu que alguns recitavam juntos. Ao fim, o texto foi terminado em uníssono. Um jovem perguntou: “Ei, senhor, Racionais é poesia?”. Diante da resposta positiva, emendou: “Então nóis gosta”. 
Além da literatura, outra ação que entusiasma Sérgio é o Cinema na Laje. Quinzenalmente são exibidos filmes e documentários na laje do Zé Batidão. Esqueça filmes de Hollywood. A ideia não é a de passar cinema para quem não tem dinheiro. É formar público. “Defendo que todos têm dinheiro para ir ao cinema. Quem não vai é porque não tem o hábito”. O poeta costuma ligar para produção dos filmes e pedir a presença do diretor ou de um ator para discutir cinema com a comunidade. 
Já houve exibições de filmes como MarighellaQuebrando TabuCinco Vezes FavelaA Febre do Rato. O trabalho da Cooperifa também atraiu personalidades importantes do meio intelectual. No fim do ano passado, por exemplo, houve a visita de Mia Couto, o badalado escritor moçambicano. “E ele não queria mais sair de lá”, relembra. 
Literatura periférica
O poeta já visitou a Europa e países da América Latina, convidado a apresentar seu trabalho. É presença constante em eventos literários. Certas vezes, porém, se depara com algum preconceito do meio literário tradicional. “Em debates, às vezes é como se dissessem: ‘O Sérgio é poeta, mas é poeta da periferia. Vamos devagar com ele”. Outra coisa que o incomoda é quando as perguntas se limitam à criminalidade ou à vida na periferia. “Eu sou da mesma cidade do cidadão. Mas é como se eu tivesse vindo da Palestina. Já me perguntaram em debate se eu vi gente morrer. Dá vontade de responder: ‘Eu não trabalho na polícia e nem sou bandido. Eu li 300 mil livros na vida e quero falar sobre eles. Li Bauderlaire, Rambaud, Verlaine. Podem ficar à vontade para falar de literatura comigo’”. 
A sua poesia, porém, é combativa. Para manter o desejo de denunciar problemas sociais pelos versos inspira-se em uma frase do poeta Ferreira Gullar: “Só é justo cantar quando seu canto arrasta consigo pessoas e coisas que não tem voz”. Para a sua poesia, a realidade é fundamental. “O pessoal da bossa nova abriu a janela e viu um dia de luz, uma festa do sol, e fez uma música. Certo eles, sincero. Mas abrimos a janela e vemos outra coisa. É importante falar sobre o que vemos”. 
Para ele, a literatura periférica brasileira já criou um estilo. “Quem nasceu em Moema (bairro de classe média alta de São Paulo) não pode fazer literatura periférica. Ou até pode, mas não vai ficar bom. Literatura romana é feita pelos romanos, literatura grega é feita pelos gregos. E literatura periférica é feita por quem mora na periferia. É o texto dos sofridos”. E, para quem insiste em julgar seus pares da Cooperifa baseado em preconceitos linguísticos ou de qualquer natureza, explica: “A nossa literatura tem menos crase, ponto e vírgula, mas ainda assim é literatura. Quando alguém diz nóis vai é que nós vamos. E vamos mesmo”.