26 de janeiro de 2009

Esperando a felicidade...

Era fim da tarde de 11 de março de 1958. Mergulhado em dramas pessoais e com um enorme sentimento de solidão, o baiano de 50 anos escreveu, com sofreguidão, uma longa e detalhada carta na qual explicara a bobagem que viria a fazer. “Morro por minha vontade. Estou sentindo apenas a cruel saudade de tudo e de todos”. Assinou o papel e, sentado num banco em frente à Praia do Russel, no Rio de Janeiro, bebeu guaraná com formicida. Morreu minutos depois. E a música brasileira, no mesmo ano do nascimento da bossa nova, perdia o compositor Assis Valente.

Levara uma vida de abandono, amargura, vaidade e raro talento. São se conformava com o ostracismo que a carreira havia lhe imposto. Mas não era apenas isso. Para entender o que lhe fez chegar ao suicídio – a derradeira de três tentativas -, é necessário voltar ao começo de tudo.

O menino José de Assis Valente nasceu em 19 de março de 1908 na Bahia. A cidade natal é confusa para os biógrafos. Uns dizem que foi entre Bom Jardim e Patioba. Ele, numa entrevista ao Cine Rádio Jornal, afirmou ser de Campo da Pólvora (“por isso tenho essa pele queimada”).

O certo é que teve uma infância atribulada. Foi sequestrado ainda pequeno de casa e criado por outro casal. Eles se mudaram para Salvador e, pouco depois, para o Rio. Com um detalhe: sem ele, que ficou sozinho na capital baiana.

Virou-se como podia. Profissionalizou-se ainda jovem como especialista em prótese dentária. Mas o que queria é ser artista, se sentir pertencente a algo, receber aplausos. As primeiras atividades foram como orador de circo e desenhista de uma revista soteropolitana. Mas ainda era pouco.

Entre próteses, desenhos e sambas

Decidiu se mudar para o Rio em 1928. Logo empregou-se no gabinete de um protético. Mas gostava mesmo de desenhar, atividade que tomava suas noites, e os vendia para revistas da cidade.

Em 1932, conheceu o compositor Heitor dos Prazeres, e a história começaria a mudar. Ele se impressionou com a facilidade do baiano para compor versos, sempre intuitivos. Com o decisivo incentivo de Heitor, conseguiu no mesmo ano ter o primeiro samba gravado: Tem Francesa no Morro, pela voz de Araci Cortes.
Ouça:

Logo depois faria o que considerava a sua melhor canção, criada na noite de Natal de 1932. Era Boas Festas, o maior sucesso do gênero natalino da história da música nacional. Estava sozinho em casa, triste, quando viu uma imagem de uma menina com os sapatinhos sobre a cama para esperar o presente de Papai Noel. Foi o suficiente para a canção amargurada nascer ali mesmo: Anoiteceu, o sino gemeu / E a gente ficou feliz a rezar / Papai Noel, vê se você tem / A felicidade pra você me dar / Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel...
Ouça:

A paixão platônica por Carmen Miranda

No mesmo ano assistiu a uma apresentação de Carmen Miranda, jovem cantora que o encantou instantaneamente. Fez de tudo para se aproximar e, após se conhecerem de fato, passou a compor canções exclusivamente para ela. Foram 24 gravações e quase todas se tornaram sucesso, como E o Mundo Não se Acabou, Recenseamento e a genial Camisa Listrada: Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí / Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu Parati...


E o Mundo Não se Acabou

Recenseamento

Camisa Listrada, por Carmen Miranda


Estava no auge da fama, sentindo-se importante e amado pelo público, quando Carmen, em 1939, decidiu se mudar para os Estados Unidos. Foi um baque. Assis sentiu-se traído, abandonado. E, pior: tinha dificuldade de compor para outras cantoras.

Daí em diante a carreira começou a decair. Novos ritmos tocavam nas rádios e sua música passava a ser considerada obsoleta. Ele não conseguia – e muitas vezes não queria - acompanhar as novidades. Emplacou alguns sucessos, como o clássico Fez Bobagem, de 1942, gravado por Araci de Almeida. Mas sem a mesma repercussão de antes. Também não teve sucesso no casamento com Nadyle da Silva Santos, que durou menos de três anos. Com ela teve sua única filha, Nara Nadyle.

Vendo a fama de longe e com dívidas quase impagáveis, tenta o suicídio duas vezes. Não para de compor, mas boa parte apenas lota a gaveta. Pouca gente quer gravar um compositor que estampa as manchetes dos jornais apenas por tentar se matar. Cada vez se afasta mais das pessoas. E aí chegou a fatídica data de 1958.

O sucesso que sempre perseguiu viria pouco depois. Não mais na voz de Carmen Miranda, mas pelas sucessivas regravações a partir dos anos 1960. Com destaque para os Novos Baianos, que transformaram Brasil Pandeiro num estrondoso sucesso nacional.

Uma das mais regravadas é o samba Alegria, um marco na carreira e, sobretudo, uma das mais elaboradas sínteses da sua existência. Uma vida na qual a dor e o prazer coexistiram numa eterna busca por um sentimento que nunca alcançaria: Esperando a felicidade / Para ver se eu vou melhorar / Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar.
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