24 de agosto de 2010

Sem saber, Agnaldo Timóteo fez nascer poderosa canção de protesto

Os compositores considerados subversivos eram vigiados de perto durante a ditadura militar (1964-1985). O principal recurso para burlar a censura era abusar das metáforas e contar com a pouca inteligência dos censores - o que costumava dar certo. Em 1972, porém, Paulo César Pinheiro resolveu escancarar ao escrever Pesadelo, em parceria com Maurício Tapajós. A canção ia direto ao ponto: Você corta um verso / Eu escrevo outro / Você me prende vivo / Eu escapo morto. "Propus a Maurício um canto de guerra. Uma canção em que não usássemos metáforas, em que dissessemos claramente o que pensávamos, direta, sem subterfúgios, sem firulas, sem máscaras”, explica Paulo no livro História das Minhas Canções (Leya, 2010).
Paulo César Pinheiro

O MPB4 prometeu gravá-la quando fosse aprovada, mas o grupo sabia que era quase impossível passar pelo crivo dos censores. Não contavam com uma artimanha de Paulo: enviar a música para análise dentro da pasta das músicas de Agnaldo Timóteo, que fazia parte da mesma gravadora - os cantores considerados românticos recebiam aprovação quase automática. Pesadelo voltou aprovada e sem cortes. Dizem que Agnaldo nunca soube da história.

A canção ganhou os shows do MPB4 e tornou-se uma espécie de hino de resistência durante os anos de chumbo. Até combatentes da Guerrilha do Araguaia a cantavam na selva para manter o moral elevado. “Por não ter metáforas, virou a mais poderosa música de contestação à ditadura”, afima.

Pesadelo (Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós)
Quando um muro separa, uma ponte une
Se a vingança encara, o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua, ela um dia é nossa

Olha o muro, olha o poste
Olha o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós
Olha aí...

Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente...olha eu de novo
Pertubando a paz, exigindo o troco
Vamos por aí, eu e meu cachorro

Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós
Olha aí...

O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade guardiã
O braço do Cristo-horizonte
Abraça o dia de amanhã
Olha aí...

MPB4 Pesadelo (1974)

5 de agosto de 2010

Nos sambas, pedaços de seu coração

O sambista baixinho e sedutor cunhou a expressão usada comumente até hoje: dor-de-cotovelo. Vítima de amores e desamores, de paixões avassaladoras e términos arrasadores, transportou para suas canções a melancolia que lhe acompanhava. Sem sair de Porto Alegre, tornou-se um dos maiores nomes do samba. Definia: “As minhas músicas são biografias das páginas mais tristes da minha vida”.

"Tudo o que eu canto é verdade", dizia Lupicínio
A cena é clássica: o cidadão entra no bar sozinho e melancólico. Na cabeça, a amada, “aquela ingrata”, que o abandonou. Pede chope ao garçom. Depois, passa pro uísque. Lá fica durante horas, com os cotovelos sobre o balcão, remoendo a tristeza pela separação amorosa. São esses momentos que inspiraram Lupicínio Rodrigues a construir um repertório sem paralelo na música brasileira, e a criar a expressão que caiu no domínio popular: dor-de-cotovelo.

Mas não foi apenas na observação alheia que o gaúcho construiu a sua obra. Boa parte das canções é autobiográfica. Sua vida amorosa cheias de desilusões serviu-lhe de inspiração para muitos sambas. São mais de 300. Depois de décadas de relações atribuladas, tinha algo para comemorar: “Eu tive muitas namoradas na vida. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as que me fizeram bem eu esqueci”.

Nascido em Porto Alegre a 16 de setembro de 1914, era o terceiro filho do casal Francisco e Abigail, que teriam 21 ao total. A infância foi pobre, mas digna. Era o primeiro homem e o mais mimado entre os irmãos. Pôde estudar, mas os pais ouviam muitas reclamações dos professores. Diziam que o pequeno Lupi (apelido que lhe acompanharia vida afora) só queria saber de baderna, de briga e de cantarolar. Já na adolescência foi parar no Exército, por ordem do pai, que queria garantir um bom futuro ao filho. Mas gostava mesmo era de passar noites em rodas boêmias, de fazer marchinhas para os blocos carnavalescos e de jogar futebol nos campos de várzea – décadas depois, inclusive, seria o autor do hino do Grêmio.

Com 16 anos, já no Exército, emplacou a primeira música num bloco: Carnaval, o marco inicial de sua carreira. E muitas viriam na sequência, além de se apresentar como cantor em conjuntos. Mas nunca aprenderia a tocar um instrumento sequer. Compunha era assobiando. Em 1932, Noel Rosa passou um tempo na cidade. Claro, se arranjou no circuito boêmio de Porto Alegre. Numa noite qualquer, assistiu ao conjunto Catão, no qual Lupicínio era cantor. Ao observar o adolescente, exclamou: “Esse garoto vai longe!”.

Nasce a dor de cotovelo
O primeiro grande amor de Lupicínio foi Iná, moça que conheceu em Santa Maria, no interior do estado, quando servia o Exército. O namoro durou seis anos, tornaram-se noivos. Só que ela vivia a reclamar de sua vida boêmia. Cansada, resolveu separar-se. Lupicínio ficou arrasado, mas seguiu a vida. Pouco tempo depois flagrou a moça de braços dados com um outro sujeito. Ela ainda avisou: “Prefiro me casar com qualquer um, até morrer de fome, do que voltar pra você”. O ciúme e a raiva fez nascer um clássico da música brasileira, Nervos de Aço: Você sabe o que é ter um amor, meu senhor / Ter loucura por uma mulher / E depois encontrar esse amor, meu senhor / Nos braços de um tipo qualquer. Iná ainda seria inspiradora de várias outras. “Tudo o que eu canto é verdade”, revelaria.

Mas o sucesso nacional demoraria. Porto Alegre era um lugar distante dos centros Rio e São Paulo. Se chegava por aquelas bandas praticamente só pelo mar. Os marinheiros – que frequentavam as boates da cidade – foram os responsáveis por levar a produção cultural local para outras plagas. E foi pelos marinheiros que Cyro Monteiro, que vivia no Rio, descobriu a música Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio e Felisberto Martins, em 1938. O samba se tornaria um grande sucesso na voz de Cyro, e o restante do Brasil começaria a conhecer Lupicínio.

Viveu e morreu do coração
É melhor brigar junto do que chorar separado”, costumava ensinar Lupicínio. Só tinha uma coisa que gostava tal qual as mulheres: a boêmia. Ele abriu bares para ganhar dinheiro e continuar na vida boêmia ao mesmo tempo. Chegou a confessar: “Eu não sou músico, não sou compositor, não sou cantor. Eu sou boêmio”. Mas também engajou-se na causa dos compositores. Em 1946, fundou a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem) na cidade. E continuava a compor sem parar.

Um dos mais importantes divulgadores de sua obra foi Francisco Alves e, principalmente, Jamelão. O mangueirense dedicou discos exclusivos às canções de Lupicínio, entre as quais o clássico Vingança, outro recado para uma mulher que o abandonou. Sentimental e mulherengo, teve muitas paixões que lhe inspiraram sambas: Ela Disse-Me Assim, Volta, Esses Moços, Dona Divergência. Numa entrevista ao Pasquim, perguntaram: “Você tem alguma música cujo tema não seja mulher?”. A resposta: “Se tenho, não me lembro agora”. Numa outra entrevista, confessou: “As minhas músicas são biografias das páginas mais tristes da minha vida”.

Vinicius de Moraes emitiu uma verdade cristalina sobre os poetas e o ato poético: 'todo poeta só é grande se sofrer'”, lembra o pesquisador musical Ricardo Cravo Albin. Para depois, finalizar: “Nesse contexto, Lupicínio terá sido o maior dentre todos os poetas do cancioneiro. Porque ninguém exibiu – com tal opulência – os sofrimentos e as dores-de-cotovelo como o gaúcho baixinho, de voz mansa e olhos indecifráveis, numa estranha mistura de mel, sensualidade e carência afetiva”. Talvez a mais importante confissão deste estado de espírito seja um verso de Ponta de Lança: Uma pessoa prestando atenção /Vê que as rimas dos versos / Que eu faço / Trazem pedaços do meu coração. Em 1974, aos 59, Lupicínio morreu como viveu: do coração.

Lupicínio Rodrigues - Pout pourri (programa "Sambão" - 1973)