31 de agosto de 2008

Melhor que o silêncio, só conversa de João

“Boa noite, obrigado”. Essa foi a primeira surpresa de uma noite inacreditável. João Gilberto não é aquele músico excêntrico e fechado que, ao entrar no palco, mal percebe que há uma platéia a sua frente? Ao menos naquela apresentação histórica do Auditório do Ibirapuera, mandaram um sósia. E duvido que alguém tivesse sentido falta do original.
Ele tocou a primeira música, com a perfeição que lhe é usual. O público fez silêncio absoluto, com a admiração (e algum medo que o violonista fosse embora do nada), como também é usual. Mas, ao terminar de executá-la, encarou o público e começou a – surpreendentemente – falar, daquela maneira de seduzir ouvintes que só João sabe. “Uns jornalistas por aí falaram que me atrasei ontem porque havia saído para jantar. Gente, eu peguei um avião demoradíssimo, e não era desses modernos a jato, não. Era quase um teco-teco, um avião de hélice ainda. Disseram que saí pra jantar... Eu engoli a comida! Se não comesse algo, cairia morto aqui na frente de você”. Entre “Ahhhhhhhhhhhh....” e gargalhadas do público, se viu que em uma explicação São Paulo já havia perdoado o gênio de todas as críticas que já recebeu na vida. Mas era só o começo.
Após outra música, foi novamente ao microfone. “Disseram que saí pra jantar.... humpf. Tem jornalista que perde o amigo, mas... não perde a notícia”. Novos “Ahhhhhhhhhhh” do público. Disse que tem amor por São Paulo, pela gente trabalhadora e que nunca faria algo que desagradasse esta cidade. E terminou, de forma quase nonsense: “É o amoooooooor”, com timbre de cantor sertanejo. Neste momento todos ficaram com coraçõezinhos de desenho animado nos olhos.
Chegou o momento do, possivelmente, maior clássico do seu repertório, O Pato. A reinventou de forma igual como faz há 50 anos. Terminou de tocar, olhou para o nada e divagou: “Tão bonitinhos os patos na lagoa, né? Tão bonitinhos...”. Houve uma divisão na platéia. Ninguém mais sabia se queria que a música começasse ou que terminasse. Pois, a cada término, ouviríamos João falar, que é a única coisa melhor que seu canto.
E não importa se fossem críticas à imprensa, divagações ou comentários semi-fúteis. Saindo de Joãozinho, se tornavam acontecimentos. “Eu nunca bebo água no show. Nunca bebo. Hoje vou beber”. Pegou a garrafinha ao seu lado, começou a abrir e... “Ah, hoje não vou beber também”.
Mostrou uma música inédita também, que pelo que entendi foi composta por ele. Era uma homenagem ao Japão, com palavras em japonês, português e inglês. “Eu só deveria mostrar essa música lá no Japão. Mas vou tocar pra vocês. Eu adoro o Japão, adoro aquele povo. Que bom que eles vieram para o Brasil ser nossos vizinhos”. O público: “Ahhhhhhhhhhhhh”.
Na hora de executar Bahia com H, lembrou como conheceu a música. "Eu encontrei com o compositor na antiga Rádio Excelsior. Ele era de Campinas. Falei pra ele: 'Que beleza a música que você fez sobre a Bahia. Que linda, que coisa linda. Você deve amar a Bahia'. E ele me respondeu: 'Eu nunca fui na Bahia'".
Logo depois, tocou a última música, se levantou e se curvou para São Paulo, que já havia se curvado a ele há 50 anos. Ao se retirar, todo o barulho contido nos 800 (ou 1.600) pulmões começou a ecoar. “Volta! Volta! Volta!”. E ele voltou.
Todos já sabiam que aquela possivelmente seria a última música de uma noite inesquecível. O baiano se envolveu ao violão (porque ele não toca, mas se envolveao instrumento. Se fosse um ser mitológico seria meio homem, meio violão, como disse um jornalista), começou a dedilhar os primeiros acordes e se despediu do público com a belíssima Guacyra. “Adeus Guacyra/ Meu pedacinho de terra/ Meu pé de serra/ Que nem Deus sabe onde está / Adeus Guacyra / Onde a lua pequenina / Não encontra na colina / Nem um lago pra se oiá / Eu vou embora/ Mas eu volto outro dia...”. Adeus, João, pensou o público em uníssono, quase com lenços brancos de mulheres de soldados que estão indo para a guerra. Assim que ele sumiu entre as cortinas, o público boquiaberto ainda conseguiu soltar suas últimas palavras: "Ahhhhhhhhhh".

10 de agosto de 2008

Melhor que o silêncio, só show de João

Coerência e genialidade. Não há outras formas para descrever a figura que modernizou a música brasileira e, em apenas um disco, livrou todo o País dos bolerões sentimentais que infestavam as rádios no fim dos anos 1950.

João Gilberto, aquele que diz que faz samba, e não bossa nova.

João Gilberto, aquele que nunca abriu concessão a sua arte.

João Gilberto, aquele que disse que as árvores se descabelavam. Ao ser interpelado por uma pessoa desavidada, que explicou que as árvores não têm cabelos, respondeu: "E tem gente que não tem poesia".

João Gilberto, aquele que quase enlouqueceu todos os músicos na gravação de Chega de Saudade, porque eles insistiam em não ter sua genialidade.

João Gilberto, aquele que disse pra Tom Jobim: "Você é brasileiro, Tom, você é preguiçoso".

João Gilberto, aquele que, ao gravar com Stan Getz, balbuciou em português: "Como este gringo é burro".

João Gilberto, aquele que explica que cantar é como rezar. Acima da técnica e do alcance vocal tem que ter sinceridade.

João Gilberto, aquele que é melhor que o silêncio.

João Gilberto, aquele que fará dois shows em São Paulo nos dias 14 e 15 de agosto.

Bruno, aquele que conta os milésimos de segundos pra estar em uma das cadeiras do Auditório do Ibirapuera na apresentação de sexta-feira.

Amém.

1 de agosto de 2008

Pedro Cafardo, fale por mim

Há anos atuo numa filantrópica campanha para abrir os olhos da humanidade sobre alguns temas lingüísticos. Não por puritanismo gramatical, mas porque as expressões têm sentido de ser como são. Existir "mau" e "mal", por exemplo, não é um capricho de quem inventou as palavras. Enfim, enfim... Deixo Pedro Cafardo, do Valor Econômico, terminar de falar por mim. E um bom final de semana a todos.
Alguém já viu uma jaca despencar 5%?

Pedro Cafardo
Valor Econômico

O leitor mais atento deve concordar que a imprensa freqüentemente exagera na criatividade, escorrega nas palavras e agride normas no uso diário da língua portuguesa. Pela repetição, alguns erros e manias certamente chegam a irritar esse leitor.
O "fim de semana", por exemplo, foi quase extinto na imprensa, tanto em jornais e revistas quanto no rádio e na televisão. Usa-se, pomposamente, "final de semana". Vá lá que o Aurélio admita o uso da palavra "final" como substantivo, mas ela é primordialmente um adjetivo.
Não há explicação para o fato de que o adjetivo "final" tenha, aos poucos, tomado o lugar do substantivo "fim", muito mais elegante nesse caso. Afinal, se fim de semana fosse final de semana, o início dela seria inicial. Dói ouvir a todo instante no rádio e na TV a repetição de final de mês, final de semestre, final de ano ou final do filme. Isso chega a ser brega.
Jaca despenca de vez ou fica no galho. A bolsa, idem
Não há, obviamente, nenhuma regra para o uso de termos em inglês ou originários do inglês. O bom senso indica o que usar. Agride o bom senso, por exemplo, empregar a palavra "sítio" no lugar de "site" da internet. Pode ser que em Portugal, onde essa palavra é comumente usada com o sentido de "lugar", sítio seja melhor que site. Mas, no Brasil, sítio sempre foi uma pequena propriedade rural. O "site da internet" já ganhou a briga: não há por que se insurgir contra o termo. Puristas poderiam até tentar emplacar um aportuguesado "saite", mas "sítio" não dá. É pedante.
Outras palavras advindas do inglês, embora inadequadas, acabam ganhando também a briga e se impondo no dia-a-dia apressado dos textos da imprensa. É inútil combatê-las. "Volatilidade", por exemplo, é um termo escrito sem nenhum receio pelos jornalistas de economia. No dicionário, "volátil" é uma coisa que voa, que se reduz a gás ou vapor. É uma qualidade que, em português, se aplica perfeitamente aos gases, não às cotações das ações. Mas, quando as bolsas passaram a ter um comportamento instável, na crise da bolha da internet, a imprensa econômica importou o "volatility" do inglês. E não teve a idéia de traduzi-lo por "instabilidade". Para a imprensa, "volatilidade" passou a ser uma instabilidade muito forte, significado que não encontra respaldo na origem da palavra.
Para dar mais ênfase a uma notícia, a imprensa de economia também acaba por escolher alguns verbos diferentes, que são usados de forma inadequada - como "despencar" ou "desabar" no lugar de "cair" e "disparar" no de subir. São muito comuns frases assim: "A bolsa de São Paulo despencou 5%" ou "o dólar desabou 6%". Isso chega a ser engraçado. Pode-se, é claro, usar esses verbos para retratar o dia-a-dia do mercado, mas sem perder a noção de seu significado. Despencar é um verbo usado para descrever a queda de frutas, objetos ou pessoas. Uma jaca despenca da jaqueira quando está muito madura. Nunca se viu, porém, uma jaca despencar 5%. Ou ela despenca de vez ou fica no galho. E se a jaca não pode despencar 5%, por que a bolsa de valores poderia? Desabar se aplica bem a um prédio que cai ou a uma ponte. Se uma obra dessas desaba, cai de uma vez. Também não dá para imaginar como seria possível um prédio desabar 6%. Se o articulista quiser ser grandiloqüente, até poderá dizer que a bolsa "despencou", o dólar "desabou" ou que a cotação da soja "disparou". Mas nunca que "despencou 5%", "desabou 6%" ou "disparou 10%".
Outro uso inadequado que deve irritar o leitor atento é o do verbo "acontecer". São muito comuns frases assim: "A reunião do Conselho Monetário Nacional vai acontecer na quarta-feira". Acontecer passa, necessariamente, a idéia do inesperado ou do imponderável. Então, um evento programado não pode "acontecer". Ele ocorre ou realiza-se. Só acontecem mesmo acidentes nas estradas, desabamentos, enchentes nas cidades etc. Enfim, não podem acontecer coisas previstas.
Por falar nisso, é comum acontecer a troca de advérbios por adjetivos em textos jornalísticos. "Independente" ocupa com freqüência o lugar de "independentemente". Há dias, alguém escreveu que "independente do resultado final da inflação de junho, o Banco Central deverá aumentar os juros na próxima reunião do Conselho de Política Monetária". No dia seguinte, a notícia de uma agência informava que "a confiança do investidor caiu 'forte' em razão dos aumentos de preços". Aparentemente, a imprensa odeia advérbios e cultiva os adjetivos.
Pedro Cafardo é editor-executivo do Valor.
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Nota minha: Mas o pior continua sendo o "literalmente o Brasil saiu dos trilhos". Essa liberdade poética é imbatível.