5 de agosto de 2014

Maldito, não. Revolucionário.


Durante toda a carreira Itamar Assumpção ouviu que era um “artista maldito”, afirmação que o incomodava. Mas sempre fez os discos exatamente como quis, sem ceder um milímetro às pressões da indústria fonográfica. Ajudou a criar um dos movimentos musicais mais importantes de São Paulo. Ao mesmo tempo vanguardista e respeitoso à obra de grandes artistas do passado, nunca foi totalmente entendido pelo público. “Itamar foi uma pessoa tão desperdiçada. Isso ficará evidente mais tarde”, profetizou o parceiro Arrigo Barnabé.


 “As pessoas não entendem e afirmam que sou maldito. O fato de eu não me entregar às abobrinhas musicais resulta em uma série de rótulos equivocados sobre mim”. Itamar Assumpção tinha total aversão a fama de artista marginal que o senso-comum havia lhe imposto. Ao mesmo tempo, negava-se a jogar pelas regras das grandes gravadoras. “A música é meu patrimônio e eu mando na minha carreira. Maldito, não. Sou um revolucionário”.
 
Desde que agitou a cena musical paulistana em 1980 com Beleléu, Leléu, Eu, até lançar o amargurado Preto Brás, em 1998, suas músicas nunca figuraram entre os hit parade das rádios FMs. Fato que lhe dava uma mistura curiosa de orgulho e dissabor. O grande público tinha uma dificuldade danada de entendê-lo. Talvez porque tentar compreender fosse uma missão inútil. “Itamar tinha parceria com o demônio da palavra musicada: apenas começava a cantar, e a música continuava sozinha, no ar”, afirmou José Miguel Wisnik. Já para outro parceiro, Naná Vasconcelos, “as músicas de Itamar são mantras. Chegava ao auge da sabedoria com simplicidade. Era o astro do intelecto”.

O músico elegante e melancólico se tornou uma das mais perfeitas traduções musicais de São Paulo. “Por oposição, se pode compará-lo com Jorge Ben. A música dos dois é comunicativa. Mas Jorge é alegre, do dia, e Itamar era mais amargo, da noite’, explicou o grande parceiro Arrigo Barnabé.

Do teatro londrinense à Varguarda Paulistana
Apesar da identificação com São Paulo, Francisco José Itamar de Assumpção nasceu na interiorana Tietê em 1949. O neto de escravos angolanos aprendeu a tocar atabaque no quintal de casa. “Sou um negro brasileiro legítimo. Descendente de escravos, conhecedor da cultura africana e filho de pai de santo”.

Aos 12 anos mudou-se para a paranaense Arapongas. Na adolescência apaixonou-se pela música de Jimi Hendrix e aprendeu a tocar guitarra sozinho. Chegou a se matricular na faculdade de Contabilidade, mas decidiu largar tudo para se dedicar ao teatro na vizinha Londrina. Em uma peça, em que fazia o papel de Tiradentes, estava no plateia um jovem londrinense chamado Arrigo Barnabé. Tornaram-se amigos e parceiros musicais. Quando Barnabé decidiu se mudar para São Paulo, em 1973, convidou Itamar. Ambos se tornariam paulistanos por toda a vida.

Na cidade, envolveu-se definitivamente com música. Ao lado de Barnabé, grupo Rumo e Premeditando o Breque, inaugurou um movimento musical conhecido como Vanguarda Paulistana, notória pela alta dose de experimentalismo e pela independência da indústria fonográfica, fato até então incomum. Em 1980 surgia Beleléu, Leléu, Eu, o primeiro e elogiado disco de Itamar. Dentro do mesmo elepê apareciam influências de tropicália, funk, samba, soul, poesia concreta e música erudita. Foi considerado pela revista Rolling Stones um dos 100 melhores discos da história do País. O sucesso, porém, ficou restrito a pequenos grupos.

Amor pelas orquídeas
Ao mesmo tempo em que vivia ao lado dos “descolados” e universitários de São Paulo, recusava-se a se mudar do bairro da Penha, na zona leste, então uma região pouco valorizada da capital. Em Nobody Knows, cantou, em inglês: Ela me abandonou / Porque moro no lado leste da cidade (...) O lado leste é meu santuário. No quintal de sua casa penhense dedicava-se à outra paixão: cuidar de plantas e flores, com dedicação especial às orquídeas.

Itamar gostava de ironizar a condição de artista marginal. Lançou durante os anos 1980 discos batizados como Às Próprias Custas S/A e Intercontinental! Quem Diria! Era Só o Que Faltava!!!, este último produzido pela Continental, a primeira e única vez que lançou um disco por uma grande gravadora.

No começo dos anos 1990 convidou oito mulheres para criar um novo grupo musical. Lembrou-se de seu amor pelas flores e batizou-as de Orquídeas do Brasil. Ao lado das moças lançou uma trilogia de discos considerada histórica: Bicho de Sete Cabeças, com o qual conquistou Prêmio Sharp de Melhor Disco de Pop/Rock. Logo depois, lançou um álbum inteiramente dedicado à obra de Ataulfo Alves, um dos seus ídolos musicais.

“Sofrer vai ser a minha última obra”
Apesar da qualidade de Bicho de Sete Cabeças e de Ataulfo Alves por Itamar Assumpção, a fama de maldito não saia de si. O próximo disco, Preto Brás, soou como um desabafo do artista que se amargurava pela falta de entendimento do público. “O resultado foi uma raiva expostas como ferida abertas no iracundo Preto Brás”, escreveu o jornalista Pedro Alexandre Sanches.

Na mesma época descobriu estar com câncer. Manteve a rotina de shows nos intervalos das internações, compunha para dois novos discos individuais e outro em parceria com Naná Vasconcelos – que se chamaria Vasconcelos e Assumpção  - Isso Vai Dar Repercussão. Não chegou a ver o resultado de nenhuma das obras. Morreu em 12 de junho de 2003, aos 53 anos. “Itamar foi uma pessoa tão desperdiçada. Isso ficará evidente mais tarde”, lamentou Arrigo Barnabé.

Em um dos seus últimos shows, contou com bom-humor sobre o tormento da doença e o medo da morte. Depois, virou Itamar Assumpção, com a mesma aspereza delicada de sempre, e cantou uma música que fez com Paulo Leminski quando a iminência da morte já lhe fazia companhia diariamente: Um homem com uma dor / É muito mais elegante / Caminha assim de lado / Como se chegando atrasado / Andasse mais adiante (...) Ópios, edens, analgésicos / Não me toquem nesse dor / Ela é tudo o que me sobra / Sofrer vai ser a minha última obra.