10 de janeiro de 2012

Nássara, um carioca autêntico

O rapaz nascido na zona norte do Rio de Janeiro tornou-se um dos maiores caricaturistas da história do País. Não se limitou à atividade. Também compôs mais de 200 canções, boa parte marchinhas cantadas até hoje. Entre os parceiros, gente da pesada, como Noel Rosa, Wilson Baptista e Ari Barroso. Transpirando carioquice, Nássara nunca abriu mão de viver na boêmia, entre intelectuais, artistas e vagabundos.

Fim da década de 1960. A cidade do Rio de Janeiro estava em processo de rápida transformação. Prédios altos surgiam na orla das praias, edifícios antigos do centro eram demolidos, a violência urbana começava a sair do controle. Antônio Gabriel Nássara, então com quase 60 anos, via as mudanças sem muita preocupação, mesmo sendo testemunha dos momentos áureos da Cidade Maravilhosa. “O autêntico carioca é aquele que depois de ter sofrido na carne todos os pesadelos que desabaram sobre o Rio moderno, ainda encontra em si amor e ternura pela cidade”, disse em entrevista ao jornalista Joel Silveira.

Nássara havia passado as últimas décadas praticando com louvor as principais características cariocas: o papo-furado em botecos, o bom humor, o otimismo diante das dificuldades, os sambas compostos sob o ritmo de caixinhas de fósforo. Só temia pelo fim da espécie: “O bom carioca é uma raça em processo de extinção. Acabará quando acabar gente como eu. Ou como o Bororó, a Aracy de Almeida, o Marques Rebelo e o Di Cavalcanti”.

Nascido em São Cristóvão e criado em Vila Isabel, ambos bairros tradicionais da zona norte, Nássara produziu, entre um chope e outro, um importante legado artístico. Compôs exatas 235 músicas, todas com parceiros da pesada, como Noel Rosa, Wilson Baptista, Lamartine Babo, Mário Lago, Ari Barroso. Mas celebrizou-se mesmo por suas ilustrações, publicadas nos mais importantes jornais e revistas do Rio. Seus traços fortes, porém minimalistas, registraram os personagens da cidade: políticos, escritores, sambistas, gente do povo. Não era preciso olhar duas vezes para seus desenhos para identificar o homenageado – ou a vítima. “Ele capturava, com linhas fortes, a alma frágil de quem estivesse desenhando”, define o jornalista Ruy Castro.

Primeiro jingle da história
Nássara sempre gostou de desenhar. Aos 17 anos, passou a trabalhar como ilustrador do jornal O Globo. Logo depois entraria na Escola de Belas Artes, curso que abandonaria no quarto ano. Já não dava conta das ilustrações que tinha de entregar, a essa altura em vários outros veículos.
Além dos desenhos, também tornou-se locutor do Programa do Casé, o mais importante programa de música da rádio carioca. Já começou inovando ao criar o primeiro jingle da história do rádio brasileiro: Ó padeiro desta rua / Tenha sempre na lembrança / Não me traga outro pão / Que não seja o pão Bragança.

Para anunciar um laxante e não chocar a “tradicional família carioca” – e nem a censura, que encrencava com anúncios dessa natureza –, saiu-se com a historinha: “Um casal de noivos brigou. Ele, arrependido, resolveu fazer as pazes, mas a moça estava irredutível. Conversou com a futura sogra, que o aconselhou que presenteasse a filha com algo de valor. Comprou-lhe, então, uma joia caríssima. E não fez efeito. Deu-lhe um casaco de peles. Mas não fez efeito. Então, lembrou de dar a ela um vidro de Manon Purgativo... Ahhh! Fez efeito! Manon Purgativo, à venda em todas as farmácias e drogarias.”

Alalaô
A composição musical começou a tomar papel importante na vida de Nássara a partir de 1932, ao emplacar nas rádios a música Formosa, em parceria com J. Rui. Outras grandes canções surgiriam nas décadas seguintes, principalmente marchinhas. A que causou mais comoção foi a marchinha Alalaô, composta em parceria com Haroldo Lobo, que contou com uma genial orquestração de Pixinguinha. Os versos Alalaô / Mas que calor / Atravessando o deserto do Saara... foram o maior estouro do carnaval de 1941. E de todos que viriam pela frente.

Outros sucessos surgiriam: Retiro da Saudade (com Noel Rosa), Mundo de Zinco (com Wilson Baptista), Quem Não Chora Não Mama (com Roberto Martins). Apesar disso, sugeria que tratava a música como um hobby. “Eu não me considero compositor. Eu fiz música, é diferente. Não tenho nem um décimo da força de Noel Rosa”, afirmava, modestamente.

Aos poucos, foi se afastando das músicas e das ilustrações. Mas nunca dos bares e da boêmia. Havia quem disputasse a cadeira mais perto de Nássara para ouvir suas histórias, sempre surpreendentes. “Ele tem um bom humor contagiante, boa educação inata, o irresistível amor pela noite. Tem também o bate-papo colorido no qual as palavras, arrumadas com maestria e propriedade, jamais repetem as mesmas histórias”, exaltou Joel Silveira.

Inventor do Rio
A carreira de Nássara ganharia novo fôlego em 1976, ao ser convidado para fazer parte da equipe de O Pasquim. Era o lugar ideal para seus traços – num tempo em que a imprensa começava a se tornar mais carrancuda, com menos espaço para experimentalismos. Se antes retratava Noel Rosa, Getúlio Vargas, Mário Lago, agora punha no papel Martinho da Vila, Pelé, Paulinho da Viola.

A partir dos anos 1980, passou a trabalhar menos, até por uma gradativa perda de audição. Mas não perdia o bom humor. “Em Nássara nunca dará cupim”, profetizou Ari Barroso décadas antes.

Em 1996, aos 85 anos, ainda ilustrou o delicado livro infantil Moça Perfumosa, Rapaz Pimpão, de Daniela Chindler. Mas não viu o resultado. Morreu em casa, em 11 de dezembro de 1996, vítima de enfarte. “A gente é que nem lâmpada. Um dia apaga”, disse a amigos, poucos meses antes da morte.

Dos tais bons cariocas em extinção a que um dia se referiu, foi o último a se despedir da Cidade Maravilhosa. Mas já havia deixado uma herança. “De uma certa maneira, o Rio é uma invenção de Nássara, Orestes Barbosa e Noel Rosa. Inventores também do papo-furado, foram se distraindo e a cidade cresceu em volta deles”, escreveu Millôr Fernandes.

Assista ao delicioso Ensaio com Nássara, de 1975.