Basta
andar por qualquer ambiente descolado para perceber que, para os freqüentadores
desses lugares, Romero Britto é hoje o símbolo maior do que o Brasil tem de cafona. Quase um inimigo nacional para a turma que não tira a
expressão “arte urbana” da boca. A origem desse ódio a arte popular de Romero
Britto – e de toda a arte popular de fato – é a Semana de Arte Moderna de 1922,
quando uma patota tão talentosa quanto elitista e antenada com o que acontecia no
mundo monopolizou para sempre o que seria considerado arte de bom-gosto no
Brasil.
O que era
para ser apenas mais uma corrente artística de valor tornou-se uma ditadura do
bom-gosto. O Modernismo jogou para a vala da breguice eterna e hereditária tudo
o que era produzido sem conceitos aparentes e, num primeiro momento, que servia
apenas ao entretenimento. E essa é uma das piores heranças do Modernismo: a
aversão ao entretenimento. Tudo o que tentou ser popular a partir de então ganhou a pecha de subcultura. Duvida?
Hoje pode
soar cult, mas a produção cinematográfica da década de 1950 foi achincalhada na
época por ter a intenção de divertir multidões. Os filmes estrelados por Grande
Otelo e Oscarito eram considerados óbvios e popularescos. Ao ser perguntado se
achava ruim seus longa-metragens buscarem apenas a aceitação popular, Oscarito
– um gênio – saiu-se com essa: “Filme que não é aceito pelo público
algum defeito deve ter”.
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Outro
que sofreu com as críticas dos “entendidos” foi Anselmo Duarte. Um dos maiores
galãs do cinema nacional resolveu mudar de posição e se tornar diretor em 1957,
ao rodar Absolutamente Certo, um
sucesso estrondoso. “Como um galãzinho se mete a ser diretor de cinema?” era o
que mais se ouvia em rodas de cineastas. Ele só passou a ser visto com outros olhos em 1962 ao
ganhar a Palma de Ouro em Cannes por O
Pagador de Promessas. Só ganhou respeito depois do aval dos franceses e
assim ganhar a carteirinha do clube do bom-gosto, antes exclusiva de quem se
metia com o Cinema Novo – que produziu filmes tão bons quanto sonolentos.
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O mesmo
se deu com o teatro moderno. A peça precursora é Vestido de Noiva, escrita por
Nelson Rodrigues e dirigida por Zbigniew Ziembinski, que ganhou os tablados em
1943. Dali em diante, ou um jovem diretor enveredava pelo teatro moderno, com
discussões estéticas sobre “a problemática nacional”, ou era jogado no limbo
pesado da cafonice. E ninguém quer ser considerado cafona. Nelson Rodrigues, ele próprio,
figura fundamental para o surgimento do teatro moderno, escreveu mais tarde,
com a sensibilidade que só os profetas têm: “Não sei se notaram, mas o nosso
teatro anda inteligentíssimo e de uma inteligência insuportável. Nem sempre foi
assim. Por toda a Belle Époque e até 1930, o teatro não pensava. Cada qual
fazia as coisas simples e profundas no seu métier. O ator começava e acabava no
palco. Cá fora, na vida real, babava fisicamente na gravata. A atriz, idem. E o
contrarregra não passava de contrarregra. Por isso mesmo, o teatro chegava mais
depressa e com um impacto mais firme e mais puro ao coração do povo”.
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No campo
musical, então, o preconceito se viu de forma bem mais nítida e cruel. Os
cantores populares nacionais antes do início da bossa nova arrastavam multidões
com seus dó-de-peito e com a emoção escorrendo em cada nota musical. O
surgimento da bossa representou “uma pernada na era boleral”, como escreveu o
maestro Rogério Duprat. Essa pernada, porém, quase provocou a extinção dos
antigos cantores. O violonista Yamandú Costa afirmou recentemente: “João Gilberto
acabou com a maneira de o homem brasileira cantar”. É verdade. E não é culpa de
João Gilberto. A dureza é que, a partir dele, seu estilo ter se tornado o único
caminho possível ao estar à frente do microfone.
A bossa e
seus filhos diretos – os artistas da Era dos Festivais – também criaram um
hiato na carreira de grandes músicos. Pode conferir: Adoniran Barbosa, Jackson
do Pandeiro, Silvio Caldas e tantos outros desapareceram do cenário artístico
durante a década de 1960. Só não foi uma ditadura total porque a tevê começou a
resgatar os artistas populares de fato. A televisão, na qual o Modernismo nunca
teve vez, salvou a pluralidade da cultura nacional.
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Mas tudo cíclico. Os modernos do passado desprezavam Silvio Caldas, Luiz Gonzaga e Oscarito e hoje o trio é obrigatório para qualquer cidadão de bom senso. Não à toa há tanta gente descolada cantando Raça Negra nos karaokês de agora. Primeiro, renegam. Depois percebem a própria tacanhice. E nem pedem desculpas.
Mas tudo cíclico. Os modernos do passado desprezavam Silvio Caldas, Luiz Gonzaga e Oscarito e hoje o trio é obrigatório para qualquer cidadão de bom senso. Não à toa há tanta gente descolada cantando Raça Negra nos karaokês de agora. Primeiro, renegam. Depois percebem a própria tacanhice. E nem pedem desculpas.
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Após toda
essa epopeia, chegamos ao preconceito atual a Romero Britto. O que o artista
pernambucano faz é arte pop. E toda e qualquer arte pop é mais popular (opa,
que coisa) que a arte mais sofisticada e intimista. As pessoas podem não gostar
dele, achá-lo óbvio e colorido demais, crer que sua arte serve apenas para
enfeitar lares. Tudo bem. O problema é o ódio contra alguém que ganha dinheiro
fazendo algo que gosta e que tem uma história de vida bonita. Um dia, as
turminha cult perceberá o quão patética é sua aversão ao artista plástico
brasileiro mais conhecido no mundo, assim como aconteceu com tanta gente da
história do País. E vão perceber que a sua
galeria-de-arte-urbana-orgânica-conceitual não vive às moscas por causa de
Romero Britto.
2 comentários:
chup-chup de mensaleiro. rsrs
Eu me lembro da primeira vez que vi uma reportagem sobre Romero Britto. Eu era nova e a notícia falava sobre como ele estava faturando muito em Miami. Pensei: que negócio bonito e colorido! Depois, já esquecida do seu nome e existÊncia, fui fazer pós em Educação em Artes Visuais. O curso era à distância com encontros quinzenais e a maior parte eram senhorinhas professoras de arte que, certo dia, comentaram que adoravam Romero Britto só pra receber uma bufada intensa da tutora graduada em Belas Artes. Ali eu aprendi que não era permitido gostar dele e entender de qualquer coisa. Como também era preciso falar mal de Paulo Coelho, ainda que "o alquimista" tivesse sido meu livro preferido na pré-adolescência.
Muito bem escrito o seu texto. Parabéns! Às vezes também é legal ler mais que 140 caracteres.
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