Araci de Almeida passou a
vida associada à imagem de Noel Rosa e à jurada mal-humorada de Silvio Santos. Mas
foi muito além. A cantora do subúrbio carioca pôs a dor feminina no mapa da música
nacional e era reverenciada por quem a conheceu por trás do personagem.
A
jurada do programa de Silvio Santos era a rabugentice em pessoa. Espinafrava
calouros sem dó e não costumava dar mais do que “10 paus” (a premiação mínima)
até para os cantores que haviam caído nas graças do público, para depois
receber tremendas vaias das colegas de auditório do patrão. Essa é a imagem
mais disseminada no imaginário popular sobre Araci de Almeida. Ela era, porém,
muito mais do que isso. “Na verdade, tratava-se de uma personagem criada pela
cantora para atrair a atenção do telespectador. Ela sempre foi mesmo a mais
completa cantora do samba urbano carioca”, exalta o crítico musical Ricardo
Cravo Albin.
A
fiel intérprete de Noel Rosa encantou gerações de ouvintes. Gravou três discos
com repertório exclusivo de Noel e foi figura decisiva para criar a idolatria que
há hoje pelo Poeta da Vila. Mas foi também além. A artista estreou a dor
feminina na música brasileira e era admirada até por Carmen Miranda, que
reconhecia nela a criadora de um estilo. Até Araci, só homens sofriam nas
canções. Cabiam às mulheres apenas o papel de ardilosas aproveitadoras. Quase
um ser sem desejos e opinião. Isso até Araci entoar, em 1935: Nasci no
Estácio / Eu fui educada na roda de bamba
/ Eu fui diplomada na escola de samba / Sou independente, conforme se vê...
Durante a carreira de mais de 400 canções ganhou as alcunhas
de A Dama do Encantado, em referência ao bairro em que nasceu, e O Samba em
Pessoa. Era também admiradora de livros de psicanálise, de música clássica (com
especial atenção a Claude Debussy) e de pintura moderna. Uma figura difícil de
definir. Vinicius de Moraes arriscou: “Ninguém podia avaliar bem a riqueza
interior dessa menina – pois Araci nunca chegou a ficar realmente adulta – que
saiu da pobreza mais franciscana para a glória mais inconteste, sem nada perder
de sua sensibilidade, timidez e total desambição. Possui ela um tesouro de amor
que dá às escondidas, cheia de pudor de que a percebam em ato de amor".
A
preferida de Noel
Araci
Telles de Almeida nasceu numa família de protestantes em 19 de agosto de 1914.
Logo os pais perceberam a propensão da garota ao canto. A mãe derretia-se ao
vê-la entoar hinos religiosos na Igreja Batista. Mal sabia que, às escondidas,
também soltava a voz em terreiros de candomblé e em escolas de samba. Nesses
ambientes, começou a ganhar uma boa malandragem.
O
compositor Custódio Mesquita resolveu levá-la para um teste na Rádio Educadora
no Brasil em 1933. Um dos presentes na emissora era Noel Rosa, que se encantou
de imediato por seu timbre. A dupla estava feita. A primeira gravação de Noel
para a cantora foi Riso de Criança. Tornou-se sua intérprete preferida, ao lado
de Marília Baptista. “A Araci é a pessoa que interpreta com exatidão o que eu
produzo”, disse certa vez. Levaria aos discos 10 canções do amigo com ele vivo,
entre elas Palpite Infeliz, Triste Cuíca e Eu Sei Sofrer. A derradeira foi
Último Desejo, só lançada após a morte do Poeta da Vila, em 1937.
Sem
Noel, passou a gravar marchinhas carnavalescas, pouco para seu potencial. Até
que Ari Barroso, “meio de porre”, de acordo com ela, lhe entregou a letra de
Camisa Amarela. Novamente sua voz dava vida a um clássico da música brasileira:
Encontrei o meu pedaço na avenida de
camisa amarela / Cantando a Florisbela, oi, a Florisbela...
A punk do
Encantado
A
Dama do Encantando passou a gravar diversos outros compositores e fez uma
temporada na boate Vogue, em Copacabana, entre 1948 e 1952. Lá se tornou amigos
da intelectuais da zona sul carioca, como o jornalista Antonio Maria e Vinicius
de Moraes, que a tratavam como rainha. A longa temporada resultou em três
discos dedicados à obra de Noel Rosa. Um deles contou com arranjos de Radamés
Gnatalli e capa de Di Cavalcanti, considerado o primeiro álbum conceitual da
música brasileira. “Só acordaram para a grandeza de Noel graças a Araci”, diz o
escritor Ruy Castro.
A
carreira de cantora começou a se esvair ao ser convidada para ser jurada do
programa A Buzina do Chacrinha. No
programa de Silvio Santos terminaria de cristalizar a imagem de jurada
mal-humorada. Questionada por que deixou a música de lado para ser apenas
jurada, explicou, com seu jeito debochado: “Eu sou preguiçosa, malandra, não
gosto de cantar. Para mim, dinheiro e glória não interessam. O meu negócio é ir
levando a vida”.
O
sucesso e o glamour realmente pouco lhe importavam. O dinheiro que ganhava era
gasto em poucos dias, com presentes aos amigos. Uma verdadeira punk, como a
definia o fã Itamar Assumpção. Era como se soubesse que para sempre seria um
nome fundamental da cultura nacional. “Araci era um mito. Uma expressão pura e
autêntica da música popular brasileira”, afirmou o compositor Fernando Lobo. A
mesma opinião de Paulinho da Viola, que a considera a melhor cantora de samba
da história.
No
início de 1988, foi acometida por um edema pulmonar. Recebia telefonemas
diários de Silvio Santos, preocupado com sua recuperação. Lutou contra a morte
até 20 de junho de 1988. Em seu
velório, milhares de pessoas entoaram a canção Não me Diga Adeus, que fizera
sucesso em sua voz 50 anos antes: Não vá me deixar, por favor / Que a saudade é cruel quando existe amor / Quando existe amor...
Jargão:
“Dou 10 paus!”
Vida
matrimonial: Não casou e não teve filhos.
Frases:
“Esse negócio de dizer que sou especialista em palavrão não é
certo. Gosto é de gíria, apesar de reconhecer que existem palavrões lindos".
Um comentário:
lindo texto :)
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