30 de junho de 2015

O samba em pessoa

Araci de Almeida passou a vida associada à imagem de Noel Rosa e à jurada mal-humorada de Silvio Santos. Mas foi muito além. A cantora do subúrbio carioca pôs a dor feminina no mapa da música nacional e era reverenciada por quem a conheceu por trás do personagem.



A jurada do programa de Silvio Santos era a rabugentice em pessoa. Espinafrava calouros sem dó e não costumava dar mais do que “10 paus” (a premiação mínima) até para os cantores que haviam caído nas graças do público, para depois receber tremendas vaias das colegas de auditório do patrão. Essa é a imagem mais disseminada no imaginário popular sobre Araci de Almeida. Ela era, porém, muito mais do que isso. “Na verdade, tratava-se de uma personagem criada pela cantora para atrair a atenção do telespectador. Ela sempre foi mesmo a mais completa cantora do samba urbano carioca”, exalta o crítico musical Ricardo Cravo Albin.

A fiel intérprete de Noel Rosa encantou gerações de ouvintes. Gravou três discos com repertório exclusivo de Noel e foi figura decisiva para criar a idolatria que há hoje pelo Poeta da Vila. Mas foi também além. A artista estreou a dor feminina na música brasileira e era admirada até por Carmen Miranda, que reconhecia nela a criadora de um estilo. Até Araci, só homens sofriam nas canções. Cabiam às mulheres apenas o papel de ardilosas aproveitadoras. Quase um ser sem desejos e opinião. Isso até Araci entoar, em 1935: Nasci no Estácio / Eu fui educada na roda de bamba / Eu fui diplomada na escola de samba / Sou independente, conforme se vê...

Durante a carreira de mais de 400 canções ganhou as alcunhas de A Dama do Encantado, em referência ao bairro em que nasceu, e O Samba em Pessoa. Era também admiradora de livros de psicanálise, de música clássica (com especial atenção a Claude Debussy) e de pintura moderna. Uma figura difícil de definir. Vinicius de Moraes arriscou: “Ninguém podia avaliar bem a riqueza interior dessa menina – pois Araci nunca chegou a ficar realmente adulta – que saiu da pobreza mais franciscana para a glória mais inconteste, sem nada perder de sua sensibilidade, timidez e total desambição. Possui ela um tesouro de amor que dá às escondidas, cheia de pudor de que a percebam em ato de amor".

A preferida de Noel
Araci Telles de Almeida nasceu numa família de protestantes em 19 de agosto de 1914. Logo os pais perceberam a propensão da garota ao canto. A mãe derretia-se ao vê-la entoar hinos religiosos na Igreja Batista. Mal sabia que, às escondidas, também soltava a voz em terreiros de candomblé e em escolas de samba. Nesses ambientes, começou a ganhar uma boa malandragem.

O compositor Custódio Mesquita resolveu levá-la para um teste na Rádio Educadora no Brasil em 1933. Um dos presentes na emissora era Noel Rosa, que se encantou de imediato por seu timbre. A dupla estava feita. A primeira gravação de Noel para a cantora foi Riso de Criança. Tornou-se sua intérprete preferida, ao lado de Marília Baptista. “A Araci é a pessoa que interpreta com exatidão o que eu produzo”, disse certa vez. Levaria aos discos 10 canções do amigo com ele vivo, entre elas Palpite Infeliz, Triste Cuíca e Eu Sei Sofrer. A derradeira foi Último Desejo, só lançada após a morte do Poeta da Vila, em 1937.

Sem Noel, passou a gravar marchinhas carnavalescas, pouco para seu potencial. Até que Ari Barroso, “meio de porre”, de acordo com ela, lhe entregou a letra de Camisa Amarela. Novamente sua voz dava vida a um clássico da música brasileira: Encontrei o meu pedaço na avenida de camisa amarela / Cantando a Florisbela, oi, a Florisbela...

A punk do Encantado
A Dama do Encantando passou a gravar diversos outros compositores e fez uma temporada na boate Vogue, em Copacabana, entre 1948 e 1952. Lá se tornou amigos da intelectuais da zona sul carioca, como o jornalista Antonio Maria e Vinicius de Moraes, que a tratavam como rainha. A longa temporada resultou em três discos dedicados à obra de Noel Rosa. Um deles contou com arranjos de Radamés Gnatalli e capa de Di Cavalcanti, considerado o primeiro álbum conceitual da música brasileira. “Só acordaram para a grandeza de Noel graças a Araci”, diz o escritor Ruy Castro.

A carreira de cantora começou a se esvair ao ser convidada para ser jurada do programa A Buzina do Chacrinha. No programa de Silvio Santos terminaria de cristalizar a imagem de jurada mal-humorada. Questionada por que deixou a música de lado para ser apenas jurada, explicou, com seu jeito debochado: “Eu sou preguiçosa, malandra, não gosto de cantar. Para mim, dinheiro e glória não interessam. O meu negócio é ir levando a vida”.

O sucesso e o glamour realmente pouco lhe importavam. O dinheiro que ganhava era gasto em poucos dias, com presentes aos amigos. Uma verdadeira punk, como a definia o fã Itamar Assumpção. Era como se soubesse que para sempre seria um nome fundamental da cultura nacional. “Araci era um mito. Uma expressão pura e autêntica da música popular brasileira”, afirmou o compositor Fernando Lobo. A mesma opinião de Paulinho da Viola, que a considera a melhor cantora de samba da história.

No início de 1988, foi acometida por um edema pulmonar. Recebia telefonemas diários de Silvio Santos, preocupado com sua recuperação. Lutou contra a morte até 20 de junho de 1988. Em seu velório, milhares de pessoas entoaram a canção Não me Diga Adeus, que fizera sucesso em sua voz 50 anos antes: Não vá me deixar, por favor / Que a saudade é cruel quando existe amor / Quando existe amor...

Jargão: “Dou 10 paus!”
Vida matrimonial: Não casou e não teve filhos.
Frases:
“Esse negócio de dizer que sou especialista em palavrão não é certo. Gosto é de gíria, apesar de reconhecer que existem palavrões lindos".

Um comentário:

Anônimo disse...

lindo texto :)