1 de agosto de 2008

Pedro Cafardo, fale por mim

Há anos atuo numa filantrópica campanha para abrir os olhos da humanidade sobre alguns temas lingüísticos. Não por puritanismo gramatical, mas porque as expressões têm sentido de ser como são. Existir "mau" e "mal", por exemplo, não é um capricho de quem inventou as palavras. Enfim, enfim... Deixo Pedro Cafardo, do Valor Econômico, terminar de falar por mim. E um bom final de semana a todos.
Alguém já viu uma jaca despencar 5%?

Pedro Cafardo
Valor Econômico

O leitor mais atento deve concordar que a imprensa freqüentemente exagera na criatividade, escorrega nas palavras e agride normas no uso diário da língua portuguesa. Pela repetição, alguns erros e manias certamente chegam a irritar esse leitor.
O "fim de semana", por exemplo, foi quase extinto na imprensa, tanto em jornais e revistas quanto no rádio e na televisão. Usa-se, pomposamente, "final de semana". Vá lá que o Aurélio admita o uso da palavra "final" como substantivo, mas ela é primordialmente um adjetivo.
Não há explicação para o fato de que o adjetivo "final" tenha, aos poucos, tomado o lugar do substantivo "fim", muito mais elegante nesse caso. Afinal, se fim de semana fosse final de semana, o início dela seria inicial. Dói ouvir a todo instante no rádio e na TV a repetição de final de mês, final de semestre, final de ano ou final do filme. Isso chega a ser brega.
Jaca despenca de vez ou fica no galho. A bolsa, idem
Não há, obviamente, nenhuma regra para o uso de termos em inglês ou originários do inglês. O bom senso indica o que usar. Agride o bom senso, por exemplo, empregar a palavra "sítio" no lugar de "site" da internet. Pode ser que em Portugal, onde essa palavra é comumente usada com o sentido de "lugar", sítio seja melhor que site. Mas, no Brasil, sítio sempre foi uma pequena propriedade rural. O "site da internet" já ganhou a briga: não há por que se insurgir contra o termo. Puristas poderiam até tentar emplacar um aportuguesado "saite", mas "sítio" não dá. É pedante.
Outras palavras advindas do inglês, embora inadequadas, acabam ganhando também a briga e se impondo no dia-a-dia apressado dos textos da imprensa. É inútil combatê-las. "Volatilidade", por exemplo, é um termo escrito sem nenhum receio pelos jornalistas de economia. No dicionário, "volátil" é uma coisa que voa, que se reduz a gás ou vapor. É uma qualidade que, em português, se aplica perfeitamente aos gases, não às cotações das ações. Mas, quando as bolsas passaram a ter um comportamento instável, na crise da bolha da internet, a imprensa econômica importou o "volatility" do inglês. E não teve a idéia de traduzi-lo por "instabilidade". Para a imprensa, "volatilidade" passou a ser uma instabilidade muito forte, significado que não encontra respaldo na origem da palavra.
Para dar mais ênfase a uma notícia, a imprensa de economia também acaba por escolher alguns verbos diferentes, que são usados de forma inadequada - como "despencar" ou "desabar" no lugar de "cair" e "disparar" no de subir. São muito comuns frases assim: "A bolsa de São Paulo despencou 5%" ou "o dólar desabou 6%". Isso chega a ser engraçado. Pode-se, é claro, usar esses verbos para retratar o dia-a-dia do mercado, mas sem perder a noção de seu significado. Despencar é um verbo usado para descrever a queda de frutas, objetos ou pessoas. Uma jaca despenca da jaqueira quando está muito madura. Nunca se viu, porém, uma jaca despencar 5%. Ou ela despenca de vez ou fica no galho. E se a jaca não pode despencar 5%, por que a bolsa de valores poderia? Desabar se aplica bem a um prédio que cai ou a uma ponte. Se uma obra dessas desaba, cai de uma vez. Também não dá para imaginar como seria possível um prédio desabar 6%. Se o articulista quiser ser grandiloqüente, até poderá dizer que a bolsa "despencou", o dólar "desabou" ou que a cotação da soja "disparou". Mas nunca que "despencou 5%", "desabou 6%" ou "disparou 10%".
Outro uso inadequado que deve irritar o leitor atento é o do verbo "acontecer". São muito comuns frases assim: "A reunião do Conselho Monetário Nacional vai acontecer na quarta-feira". Acontecer passa, necessariamente, a idéia do inesperado ou do imponderável. Então, um evento programado não pode "acontecer". Ele ocorre ou realiza-se. Só acontecem mesmo acidentes nas estradas, desabamentos, enchentes nas cidades etc. Enfim, não podem acontecer coisas previstas.
Por falar nisso, é comum acontecer a troca de advérbios por adjetivos em textos jornalísticos. "Independente" ocupa com freqüência o lugar de "independentemente". Há dias, alguém escreveu que "independente do resultado final da inflação de junho, o Banco Central deverá aumentar os juros na próxima reunião do Conselho de Política Monetária". No dia seguinte, a notícia de uma agência informava que "a confiança do investidor caiu 'forte' em razão dos aumentos de preços". Aparentemente, a imprensa odeia advérbios e cultiva os adjetivos.
Pedro Cafardo é editor-executivo do Valor.
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Nota minha: Mas o pior continua sendo o "literalmente o Brasil saiu dos trilhos". Essa liberdade poética é imbatível.

Um comentário:

Liginha disse...

Muito bom!!!!

Nem preciso te dizer que concordo, né, Brunitcho?