24 de fevereiro de 2012

As pataquadas do “branco mais negro do Brasil”

Há poucos anos, Caetano Veloso causou uma certa polêmica ao afirmar que Feitiço da Vila, de Noel Rosa e Vadico, era uma canção racista. Me dou a mesma liberdade do compositor baiano para sugerir que outro grande nome da música brasileira, Vinicius de Moraes, também deixou a desejar algumas vezes sobre o tema racial. Veja: não estou dizendo que Vinicius era racista. Mas, por mais estranho que a afirmação soe inicialmente, me parece ser alguém bastante lugar-comum sobre o tema. E ser lugar-comum na questão por estas terras é ser racista.

A minha “prova” é uma entrevista que o Pasquim fez com Paulinho da Viola em agosto de 1970. Em dado momento, bem no começo da entrevista, o escritor Luiz Carlos Maciel pergunta a Paulinho, lembrando-se de uma entrevista recente com o poeta e compositor Capinam:

Maciel - Na entrevista com Capinam, ele disse que o Gilberto Gil era o primeiro cara que fazia música negra no Brasil. O que é que você acha dessa opinião?

Paulinho - Eu acho que a Clementina de Jesus faz música negra.

Eis que Vinicius intervém. Um dos inventores da bossa nova - estilo conhecido por ser dos brancos da zona sul do Rio de Janeiro - sentencia que falar sobre música negra se trata de “racismo musical”. E que Gilberto Gil teria uma "natureza racista". Já Paulinho tenta contemporizar, mas não deixa de afirmar a importância da valorização da cultura negra. A entrevista se desenrola assim:

Vinicius - O jazz branco é caudatário [simpatizante] da música negra, mas depois se misturou tudo, não há uma separação de música branca e música negra. Isso é racismo musical. O que eu quero dizer é o seguinte: eu acho o Gil um tremendo compositor, mas ele tem esse racismo, então isso se manifesta através da música dele. Eu acho que é um problema da natureza dele.

Paulinho - Você vê alguma conotação de racismo no momento em que se levantam certos problemas de uma estética negra, por exemplo?

Vinicius - Não vejo desde que não seja levantado nos termos dos Panteras Negras americanos, aí é racismo negro mesmo.

Paulinho - Você não acha que esse negócio dos Panteras Negras tem um peso que coloca em segundo plano esse problema do racismo?

Vinicius - Nunca houve um ser mais humilhado que mulher e nem por isso elas são racistas.

Paulinho - Eu acho que aí há um negócio diferente. No momento em que você tenta fazer certas afirmações em termos de uma cultura negra, de certos valores negros, e tenta afirmar isso como valores absolutos, como uma coisa que tem que ser porque não foi, eu acho que é racismo. Mas no momento em que ele tenta afirmar seus valores, o negócio do racismo fica em segundo plano.

Vinicius - Eu acho que quanto mais o negro se aproximar de uma cultura, menos racista ele deve ser. É a cultura que aproxima as pessoas e resolve os problemas. Até agora não tem resolvido nada, mas nossa esperança é que resolva.

Paulinho - Essa afirmação desses valores que você entende como uma posição racista, ela é racista até certo ponto. Dependendo das proposições, das coisas que estão acontecendo, ela até pode ser uma posição válida e importante, ela pode não ser uma posição racista.

Eis que Vinicius encerra a discussão com “chave de ouro”:

Vinicius - Eu acho que o grande problema do racismo se resolve na cama, sabe?

A partir desse ponto a conversa toma outro rumo, sem explicitar o que Vinicius quis dizer com “resolver o racismo na cama”.

Mas as evidências não param por aí. A minha amiga e pesquisadora sobre relações raciais Lia Vainer Schucman recentemente me chamou atenção, indignada, sobre os versos finais de Samba da Bênção, em que o poeta versa sobre o samba: Se hoje ele é branco na poesia / Ele é negro demais no coração. Ou seja, a poesia, a parte intelectual, reclamou Lia, para Vinicius ficava sob responsabilidade dos brancos. Já aos negros cabiam apenas o lado emocional.

Não é pouca gente que conheço que afirma ver no poeta não um exaltador da cultura negra, mas sim um folclorizador. Se essas frases da entrevista viessem da boca de qualquer outro sujeito do Pasquim, seria mais fácil entender. Falar essas coisas eram de certo modo naturais na década de 1970. Mas é difícil aceitar vindo do “branco mais negro do Brasil”.

6 comentários:

Anônimo disse...

Resolver na cama. Talvez um método freyriano, em que o racismo se dilui pelo "amagalmamento" e que, ao final, acaba a ter até aspectos de doçura (nos próprios termos do sociólogo pernambucano). Nesta afirmação de Vinicius concordo com uma pequena conotação racista, daquela propriamente brasileira, que vê na mestiçagem um imperativo, na afirmação negra (estética musical, no caso)algo ameaçador do equilíbrio mestiço, e por isso "racista". Afirmar uma identidade, identidade historicamente depreciada, não pode ser racismo. Jamais.

Em relação ao Samba da Bênção, de que gosto muito, afasto qualquer existência de racismo e na verdade acho que é um dos mais solidários versos atinente ao tema. Quando Vinicius diz que o samba é "branco na poesia", ele fala do modo de versar pouco rigoroso do samba, que não exige apego a formalidades, não obriga a rimar, contrapõe-se ao parnaso. O verso branco, o verso da liberdade de escrever samba do jeito que quiser. "Negro no coração" vem complementar a metáfora, pois embora samba "branco" na poesia, o coração dele é negro e este negro tem duas funções aí: a) histórica, pois samba fora criado pelos negros brasileiros -> coração -> vida -> origem; b) em relação à imagem, à cor negra, o preto, obviamente pra fazer a ligação com o branco da poesia, para completar e finalizar a metáfora.

Anônimo disse...

Resolver na cama. Talvez um método freyriano, em que o racismo se dilui pelo "amagalmamento" e que, ao final, acaba a ter até aspectos de doçura (nos próprios termos do sociólogo pernambucano). Nesta afirmação de Vinicius concordo com uma pequena conotação racista, daquela propriamente brasileira, que vê na mestiçagem um imperativo, na afirmação negra (estética musical, no caso)algo ameaçador do equilíbrio mestiço, e por isso "racista". Afirmar uma identidade, identidade historicamente depreciada, não pode ser racismo. Jamais.

Em relação ao Samba da Bênção, de que gosto muito, afasto qualquer existência de racismo e na verdade acho que é um dos mais solidários versos atinente ao tema. Quando Vinicius diz que o samba é "branco na poesia", ele fala do modo de versar pouco rigoroso do samba, que não exige apego a formalidades, não obriga a rimar, contrapõe-se ao parnaso. O verso branco, o verso da liberdade de escrever samba do jeito que quiser. "Negro no coração" vem complementar a metáfora, pois embora samba "branco" na poesia, o coração dele é negro e este negro tem duas funções aí: a) histórica, pois samba fora criado pelos negros brasileiros -> coração -> vida -> origem; b) em relação à imagem, à cor negra, o preto, obviamente pra fazer a ligação com o branco da poesia, para completar e finalizar a metáfora.

Anônimo disse...

Não sei o que é método freyriano e nem o que é amagalmamento, mas sei que essa afirmação, de doçura, não tem nada.

"Racismo se resolve na cama"? Claro, porque submeter a mulher negra aos seus caprichos sexuais sempre foi um grande ato de altruísmo do homem branco pra: resolver a questão racial! Pra promover essa miscigenação bonita do brasileiro! Tudo pela humanidade!

E uma coisa que eu nunca entendo é essa história de dizer que se é "um pouquinho" racista, ou "um pouquinho" machista. Ou é, ou não é. Relativizar um comentário racista é uma maneira de atenuar a gravidade que ele tem: e isso, em si, já é racismo. Porque é uma maneira de dizer: olha, se for só um pouquinho racista, tudo bem. E ai de quem reclamar: qualquer reclamação será um exagero, um extremismo.

Precisamos ser muito rígidos em apontar atitudes racistas e machistas, o que não significa que tenhamos que odiar quem é racista. Odiamos e lutamos contra a atitude, não a pessoa. Ainda podemos gostar de Vinícius de Morais, sem precisar relativizar seu comentário infeliz.

Natália Pesciotta disse...

O Pedro pegou exatamente o espírito! A tal "negritude" autoafirmada por Vinicius sempre me incomodou por ter essa forma meio "folclorizada". Mas não tinha percebido essa semelhança: a visão dele tem tudo a ver com a de Gilberto Freyre (que também me incomoda).
Acho que é isso mesmo que Vinicius quis dizer na tal frase: que se a questão de preconceito racial fosse realmente importante e precisasse de defesa, não seríamos um país miscigenado. O que é, claro, uma falácia.

Um comentário nada a ver com o assunto, só um adendo: antes - muito antes! - as mulheres apresentassem "racismo" do que "as mãos cheias de perdão". A "beleza que vem da tristeza / De se saber mulher / Feita apenas para amar Para sofrer pelo seu amor /E pra ser só perdão" é duro de descer.

Anônimo disse...

*Vinicius de Moraes

Juarez Silva disse...

Sei que que vai ter gente que não vai gostar, e dizer que sou "complacente demais" com brancos racistas, mas na realidade é preciso sempre uma visão mais ampla para entender algo, Vinícius de Morais era em seu tempo um misto de intelectual típico com "marginal ao esquema" , só para se ter uma ideia era um DIPLOMATA (carreira reservada à mais alta "elite" e até hoje nada popularizada) sua educação foi das mais conservadoras mas ficou conhecido pela sua boemia e seu lado artista; no que pese o homem ser "produto do meio" (e isso inclui a mentalidade racista e a falsa noção de democracia racial das elites ) Vinícius de certa forma ROMPEU (ou tentou ou pensou tentar) com o que o destino de branco burguês lhe impunha, se "embrenhou" pelo samba e também pela religiosidade afro (assim como Jorge Amado, Carybe ), Vinícius de Moraes era um OGAN (título religioso de sacerdote para os que "não incorporam/pegam santo" ), inclui isso em suas obras e com relevância (vide : OS AFROSAMBAS , LP lançado com Baden Powell em 66 : http://www.luizamerico.com.br/fundamentais-baden-vinicius.php) coisa que nenhum artista de renome e com o peso que tinha no cenário nacional tinha feito, abriu caminho para que saudações e referências aos orixás fossem tocadas em lares brancos, festas e cantadas por brasileiros que sempre desprezaram o lado negro da cultura brasileira. Dai ele se enxergar como " O branco mais preto do Brasil na linha direta de ..." na realidade essa é uma observação religiosa, pois todo mundo da religião possui uma "linha" de ancestralidade em relação aos seus pais e mães de santo que os remete à África e dessa forma a cita..., já com relação ao "Freyrismo" dele nada a fazer, muitos da geração dele e até hoje foram influenciados por tais ideias, Darcy Ribeiro e muitos intelectuais contemporâneos, que "Não queriam ser racistas" mas conservavam aspectos graves da mentalidade racista (entre elas a da predação das negras, em um processo secular de uso/abuso e bastardização) ou o argumento até hoje utilizado pelos meta-racistas de que falar em raça ou reclamar de desigualdades é "racismo" ; estas são pessoas que de fato acreditam que a miscigenação cultural (ou mesmo a física) "resolve tudo", nem adianta se estressar com os mortos , o negócio é trabalhar pela conscientização dos vivos.