8 de janeiro de 2010

Um compositor de ouro

Ele escreveu a última linha da canção e, sentindo que tinha feito algo fora de série, entrou em êxtase. Caprichou na harmonização e mostrou a novidade ao parceiro Benedito Lacerda. A reação foi decepcionante. “Olha, meu compadre, tá muito bonito, viu, muito bonito. Essa é uma música ótima pra você cantar na igreja. Nunca vai tocar no rádio.” A despeito da previsão, Ave Maria no Morro, lançada em 1942, é um dos maiores sucessos da música brasileira. Inaugurou até um estilo musical, o samba-canção: Barracão de zinco / Sem telhado, sem pintura / Lá no morro / Barracão é bangalô / Lá não existe felicidade de arranha-céu / Pois quem mora lá no morro / Já vive pertinho do céu

Herivelto Martins nasceu em 30 de janeiro de 1912 no distrito de Rodeio, atual Engenheiro Paulo de Frontin, no interior Fluminense. Estimulado pelo pai, agitava a cidade com grupos teatrais e musicais. Mas a família mudou para São Paulo. Com a maioridade recém-completa, o rapaz partiu para o Rio. Queria ser artista.

Preto e Branco

O começo na Cidade Maravilhosa não foi fácil. Teve que dividir um quarto minúsculo com sete companheiros. “Só melhorou com a Revolução de 1932: morreram quatro”, brincava. Fazia bicos aqui e acolá quando recebeu um convite para ser gerente de uma barbearia no morro de São Carlos. Aceitou com uma condição: “Tenho que sair de vez em quando, pois sou artista”.

Com o novo emprego, poderia estar perto do pessoal do Estácio, os malandros cariocas que faziam os melhores sambas da cidade. Era um dos poucos compositores brancos a pintar por lá. Numa dessas andanças pelo bairro, foi convidado a assistir a um ensaio. Quando surgiu uma brecha, apresentou Da Cor do Meu Violão. Um produtor que estava por lá ouviu, gostou e mandou gravar. Era sua primeira música em disco.

Herivelto passou a compor sem parar: tangos, marchas, sambas. Mostrava-se um compositor eclético. E frenético: “A rapidez com que componho às vezes surpreende a mim mesmo”. Após um ensaio, fez um coro informal com o cantor Francisco Sena. Outro produtor viu e adorou. Procurava uma atração para apresentações no Cine Odeon. Nascia a dupla Preto e Branco. Mas o parceiro morreu prematuramente. Herivelto seguiu sozinho até conhecer Nilo Chagas, com quem reviveu a dupla. Nessa época conheceu também alguém que mudaria a sua trajetória.

Trio de Ouro

Herivelto ficou maravilhado ao ouvir o canto técnico e poderoso de Dalva de Oliveira. Logo se tornaram parceiros nos palcos e na vida. Casaram-se em 1938, e o grupo ganhou uma nova integrante. Um radialista anunciou: “Vamos ouvir agora Dalva de Oliveira e a dupla Preto e Branco, um trio de ouro”. Surgia o nome do primeiro – e melhor – trio vocal brasileiro.

Em quase 10 anos de sucesso, o Trio de Ouro lotou cassinos, teatros e auditórios de rádio. As músicas de Herivelto tornaram-se clássicos: Praça Onze, Lá em Mangueira, Calado Venci.
Além, claro, de Ave Maria no Morro – apesar das reclamações de um cardeal, que dizia que a canção era uma heresia e exigia que fosse censurada.

Em 1942, Herivelto assumiu a função de assistente do diretor Orson Welles, que viera ao País produzir o filme É Tudo Verdade. Para organizar os músicos, deu-lhe na cabeça usar um apito. Benedito Lacerda novamente fez um muxoxo: “Parece guarda-civil”. Dali nascia o uso do apito como elemento rítmico, principalmente nas escolas de samba.

“Seu mal é comentar o passado”

Enquanto o Trio de Ouro fazia sucesso Brasil afora, as brigas conjugais chegavam a níveis insuportáveis. Em 1947 viria a dolorosa separação. Os jornais se deliciavam com a briga pública do casal mais famoso do País. “Boa cantora, péssima esposa”, dizia Herivelto a um jornal. “Meu lar era um botequim”, devolvia Dalva.

A coisa esquentou quando a briga invadiu as músicas. Enquanto Dalva cantava Errei, sim/ Manchei o teu nome / Mas foste tu mesmo o culpado / Deixavas-me em casa / Me trocando pela orgia / Faltando sempre / Com a tua companhia (Errei, Sim, de Ataulfo Alves), Herivelto respondia: Teu mal é comentar o passado / Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois… O público adorava.

O Trio de Ouro continuaria com novas formações. Durante a existência, gravou 99 discos com quase 200 músicas.

Homenagens

A chegada dos anos 1960 foi quase uma sentença de morte para Herivelto. O afã por mudanças que assolava a música brasileira o colocou num segundo plano. Os convites para apresentações rareavam. “O rock matou a música popular”, lamentava.

Em 1987, recebeu o Prêmio Shell pelo conjunto da obra. A grande homenagem viria em 1992. A Mangueira – que Herivelto tanto homenageou em canções – preparou, de surpresa, uma apresentação na frente de sua casa: surdos, tamborins, cuícas… Herivelto não hesitou. Pegou um apito e, completamente emocionado, marcou o ritmo da festa.

Em setembro daquele mesmo ano sentiu-se mal. No leito do hospital, teve tempo ainda de anunciar: “Estou morrendo”. E seus olhos azuis fecharam-se para sempre.

2 comentários:

Pedro Amaral disse...

Parabéns, Bruno! Teu blog é show e muito informativo.

Letícia Tavares disse...

Oi Bruno, conheci seu blog após ler uma reportagem no site do itaú cultural. Estou me deliciando, muito bom!Parabéns.