11 de novembro de 2008

A alma do povo

Há poucos meses de completar um século de existência, morre em 24 de dezembro de 2006 o compositor Braguinha. Sobre o caixão, a bandeira verde-e-rosa da Mangueira. Num cartaz, os netos escrevem “Pela estrada afora costumávamos ir juntinhos. Agora teremos que seguir sozinhos”, em alusão à canção Chapeuzinho Vermelho, adaptada décadas antes pelo artista. Prestes a iniciar o enterro, os presentes começam a entoar: Meu coração / Não sei por quê / Bate feliz / Quando te vê... Foi a derradeira retribuição popular à personalidade que soube retratar o povo em sambas, marchinhas e choros clássicos, que teimam em não morrer no imaginário dos brasileiros.

Carlos Alberto Ferreira Braga nasceu em março de 1907 numa família carioca de classe média. Pouco depois, se muda para o bairro de Vila Isabel, onde passa a adolescência acerca de um tal Noel Rosa. Começa a esboçar as primeiras composições aos 16 anos. O pai – que era gerente da fábrica de tecidos Confiança – não tinha confiança alguma em o filho se tornar músico. Achava coisa de desocupado, vagabundo. Só fica todo orgulho quando Carlinhos, como a família o chamava, ingressa na faculdade de arquitetura.

Mal sabia que o garoto largaria o estudo pouco tempo depois para se dedicar exclusivamente à carreira artística, mesmo sem conhecimento formal algum. Compunha no instinto, quase pelo assobio. Ao lado de Noel Rosa, Almirante, Henrique Brito e Alvinho, forma o Bando de Tangarás. Para despistar o pai, adota um pseudônimo: João de Barro. Ironicamente, o pássaro arquiteto. Faz pequenas apresentações com o grupo, enquanto ensaia alçar vôos próprios.

Passa a compor marchinhas carnavalescas. Uma das primeiras a se tornar popular é Linda Lourinha, feita para o carnaval de 1934. Era uma espécie de resposta à Linda Morena, de Lamartine Babo. O sucesso inicial o empolga e Braguinha começa a produzir quase em escala industrial. São dessa década As Pastorinhas (com Noel Rosa), Yes, Nós Temos Banana (com Alberto Ribeiro) e muitas outras.

A criação mais notória, porém, é um choro-canção feito em 1937. A cantora Heloísa Helena pergunta se Braguinha pode pôr letra num choro de Pixinguinha. O compositor aceita o desafio e, em apenas um dia, entrega a encomenda. A música? Carinhoso, considerada um clássico definitivo da música nacional.

Na mesma época se torna diretor artístico da gravadora Columbia. Durante a carreira ajuda a projetar nomes como Radamés Gnatalli, Tom Jobim, Lúcio Alves, Dick Farney, Doris Monteiro, Tito Madi e Jamelão.

Tourada no Maracanã

A década de 1940 também é profissionalmente frutífera – e em diversas áreas. Torna-se roteirista e assistente de direção em filmes da Cinédia. Dubla temas musicais para a Disney, em filmes como Pinóquio, Dumbo, Bambi e Branca de Neve e os Sete Anões. Escreve, adapta e compõe histórias infantis, entre as quais Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos. Faz Copacabana, um hino de amor ao bairro carioca. Passa a ser conhecido internacionalmente pela voz de Carmen Miranda. As marchinhas carnavalescas também não param: Pirata da Perna de Pau, Tem Gato na Tumba, A Mulata é a Tal, Chiquita Bacana...

Um dos momentos mais emocionantes da vida se dá em 1950, quando o Brasil enfrenta a Espanha pela Copa do Mundo. A seleção goleia os europeus por 6 a 1 no Maracanã e, ao fim do jogo, os torcedores formam um dos coros mais impressionantes já vistos num estádio de futebol. Os 200 mil presentes entoam, a plenos pulmões, a marchinha Tourada em Madri (Braguinha e Alberto Ribeiro): Eu fui às touradas em Madri / E quase não volto mais aqui / Pra ver Peri / Beijar Ceci... Só uma pessoa não cantou: o próprio Braguinha. “Vendo aquilo, a única coisa que consegui foi chorar”, contou pouco depois.

Yes, Nós Temos Braguinha

No começo dos anos 1960 a marchinha carnavalesca entra em declínio no mercado fonográfico. Mesmo assim, lança Garota de Saint-Tropez, com Jota Júnior, alcançando relativo sucesso. Volta à cena em 1979, quando Gal Costa grava uma canção de quatro décadas atrás, Balancê: Ô, balancê, balancê / Quero dançar com você / Entra na roda, morena pra ver / Ô balancê, balancê...

Uma das últimas consagrações públicas ocorre em 1984, na inauguração do Sambódromo do Rio. A Mangueira desfila sob o tema “Yes, Nós Temos Braguinha” e torna-se campeã do carnaval. O artista passa os anos subseqüentes recebendo homenagens, tanto pela obra quanto pelo seu jeito leve e bem-humorado. “A vida só gosta de quem gosta dela”, como o autor de quase 500 canções sempre gostou de ensinar.

* Texto publicado na edição de dezembro de 2008 da revista Almanaque Brasil.

Um comentário:

Táia disse...

A Fábrica de Tecidos Confiança fica a menos de 15 minutos da minha casa. Passo por ela todo dia. Hoje ela é uma das lojas do Hipermercado Extra, mas a chaminé continua lá, firme e forte ;)