Fim da década de 1960.
A cidade do Rio de Janeiro estava em processo de rápida
transformação. Prédios altos surgiam na orla das praias, edifícios
antigos do Centro eram demolidos, a violência urbana começava a
sair do controle. Antônio Gabriel Nássara, então com quase 60
anos, via as mudanças sem muita preocupação, mesmo sendo
testemunha dos momentos áureos da Cidade Maravilhosa. “O autêntico
carioca é aquele que depois de ter sofrido na carne todos os
pesadelos que desabaram sobre o Rio moderno, ainda encontra em si
amor e ternura pela cidade”, disse em entrevista ao jornalista Joel
Silveira.
Nássara havia passado
as últimas décadas praticando com louvor as principais
características cariocas: o papo-furado em botecos, o bom-humor, o
otimismo diante das dificuldades, os sambas compostos sob o ritmo de
caixinhas de fósforo. Só temia pelo fim da espécie: “O bom
carioca é uma raça em processo de extinção. Acabará quando
acabar gente como eu. Ou como o Bororó, a Aracy de Almeida, o
Marques Rebelo e o Di Cavalcanti”.
Nascido em São
Cristóvão e criado em Vila Isabel, ambos bairros tradicionais da
zona norte, Nássara produziu, entre um chope e outro, um importante
legado artístico. Compôs exatas 235 músicas, todas com parceiros
da pesada, como Noel Rosa, Wilson Baptista, Lamartine Babo, Mário
Lago, Ari Barroso. Mas marcou-se mesmo por suas ilustrações,
publicadas nos mais importantes jornais e revistas do Rio. Seus
traços fortes, porém minimalistas, registraram os personagens da
cidade: políticos, escritores, sambistas e gente do povo. Não era
preciso olhar duas vezes para seus desenhos para identificar o
homenageado – ou a vítima. “Ele capturava, com linhas fortes, a
alma frágil de quem estivesse desenhando”, diz o escritor Ruy
Castro.
Primeiro jingle da
história
Nássara sempre gostou
de desenhar. Aos 17 anos, passou a trabalhar como ilustrador do
jornal O Globo. Logo depois entraria na Escola de
Belas-Artes, curso que abandonaria no quarto ano. Já não dava conta
das ilustrações que tinha de entregar, a essa altura em vários
outros veículos de imprensa.
Além dos desenhos,
também se tornou locutor do Programa do Casé, o mais
importante programa de música da rádio carioca. Já começou
inovando ao criar o primeiro jingle da história do rádio
brasileiro: Ó padeiro desta rua / Tenha sempre na lembrança
/ Não me traga outro pão / Que não seja o pão Bragança. Para
anunciar um laxante e não chocar a “tradicional família carioca”
– e nem a censura, que encrencava com anúncios dessa natureza –,
saiu-se com a historinha: “Um casal de noivos brigou. Ele,
arrependido, resolveu fazer as pazes, mas a moça estava irredutível.
Conversou com a futura sogra, que o aconselhou que presenteasse a
filha com algo de valor. Comprou-lhe, então, uma jóia caríssima. E
não fez efeito. Deu-lhe um casaco de peles. Mas não fez efeito.
Então, lembrou de dar a ela um vidro de Manon Purgativo... Ahhh! Fez
efeito! Manon Purgativo, à venda em todas as farmácias e
drogarias.”
Mas que calor...
A composição musical
começou a tomar papel importante em sua vida a partir de 1932, ao
emplacar nas rádios a música Formosa, em parceria com J. Rui.
Outras grandes canções surgiriam nas décadas seguintes,
principalmente marchinhas. Qual causou mais comoção foi a marchinha
Alalaô, composta em parceria com Haroldo Lobo, que contou com uma
genial orquestração de Pixinguinha. Os versos Alalaô / Mas
que calor / Atravessando o deserto do Saara... se tornou o maior
sucesso do carnaval de 1941. E de todos que viriam pela frente.
Outros sucessos
surgiriam: Retiro da Saudade (com Noel Rosa), Mundo de Zinco (com
Wilson Baptista), Quem Não Chora Não Mama (com Roberto Martins).
Apesar disso, sugeria que tratava a música como um hobby. “Eu não
me considero compositor. Eu fiz música, é diferente. Não tenho nem
um décimo da força de Noel Rosa”, afirmava, modestamente.
Aos poucos, foi se
afastando das músicas e das ilustrações. Mas nunca dos bares e da
boêmia. Havia quem disputasse a cadeira mais perto de Nássara para
ouvir suas histórias, sempre surpreendentes. “Ele tem um bom humor
contagiante, boa educação inata, o irresistível amor pela noite.
Tem também o bate papo colorido no qual as palavras, arrumadas com
maestria e propriedade, jamais repetem as mesmas histórias”,
exaltou Joel Silveira.
Inventor do Rio
Sua carreira ganharia
novo fôlego em 1976, ao ser convidado para fazer parte da equipe
de O Pasquim. Lugar ideal para seus traços – num tempo
em que a imprensa já começava a se tornar mais carrancuda, com
menos espaços para experimentalismos. Se antes retratava Noel Rosa,
Getúlio Vargas, Mário Lago, agora dava vida a Martinho da Vila,
Pelé, Paulinho da Viola.
A partir dos anos 1980,
passou a trabalhar menos, até por uma gradativa perda de audição.
Mas não perdia o bom-humor. “Em Nássara nunca dará cupim”,
como Ari Barroso profetizou décadas antes. Em 1996, aos 85 anos,
ainda ilustrou o delicado livro infantil Moça Perfumosa,
Rapaz Pimpão, de Daniela Chindler. Mas não viu o resultado.
Morreu em casa, em 11 de dezembro de 1996, vítima de
enfarte. “A gente é que nem lâmpada. Um dia apaga”, disse a
amigos, poucos meses antes da morte.
Dos bons cariocas em
extinção, foi o último a se despedir da Cidade Maravilhosa. Mas já
havia deixado uma herança. “De uma certa maneira, o Rio é uma
invenção de Nássara, Orestes Barbosa e Noel Rosa. Inventores
também do papo-furado, foram se distraindo e a cidade cresceu em
volta deles”, escreveu Millôr Fernandes.
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