Dia desses, eu estava
com uns amigos, conhecidos e semi-conhecidos num bar. Em um momento a
conversa rumou para música. Eu falei com a certeza de quem já
tomou três cervejas a mais: “A música poderia se resumir em Noel
Rosa, João Gilberto e Racionais”. Só se tem boa conversa com
algumas verdades absolutas jogadas sobre a mesa. Num canto, até
então quieto e observador, estava um sujeito conhecido do
semi-conhecido de barba, camisa xadrez e óculos quadrados vermelho.
O tipo que se tem certeza que rezou para Deus para ser acometido por
miopia ou astigmatismo na adolescência e que regula o nível dos
óculos pressionando o centro da armação com o dedo indicador. Pois
bem. Ele rompeu o próprio silêncio, numa mistura de complacência e
didatismo: “Desculpa, os outros tudo bem, mas Racionais não dá.
Aquilo não é música. Mas o que mais me pega contra eles é a
incoerência. Falam mal de playboy e o Mano Brown tem um Audi”.
Depois, afirmou como se fosse um ser iluminado pelo Criador que é
amante de jazz.
Não lhe disse, mas
esse cara não sabe nada sobre a vida. Não há incoerência alguma.
Para começar a acabar com o argumento basta ouvir o disco Nada Como
um Dia após um Outro Dia, de 2002. É um tratado sobre a
importância de ganhar dinheiro, de ter um carrão e uma corrente de
ouro e as contradições que esses bens trazem a um sujeito negro de
periferia. As pessoas querem ter destaque, seja qual for, seja
pelo motivo que for. Os Titãs já ensinaram na década de 1980:
A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e
arte. Com a diferença que Brown afirma: A gente não quer só
comida / A gente quer comida, cordão de elite 18 quilates, breitling
no pulso e lupa baunch & lomb.
Cada música do disco,
aliás, lembra da importância da grana no bolso. A música Vida Loka Parte 2 exalta: Imagina nós de Audi, ou de Citroen e
Não é questão de luxo, não é questão de cor / É
questão que fartura alegra o sofredor. Em A Vida é Desafio, é
lembrada uma verdade fundamental: O sonho de todo pobre é ser
rico. Ninguém quer ser
coadjuvante de ninguém, como se diz em Da Ponte Pra Cá.
Ninguém. E isso branco de classe média – de playboy da Vila
Olímpia a estudante de Ciências Sociais da Universidade de São
Paulo – tem dificuldade de entender.
Uma das frases que mais
se ouve por aí desde a ascensão de milhões de pessoas para a
famosa classe C é: “Agora qualquer casa na favela tem uma tevê de
plasma, mas não tem livros”. Só idiotas eternos esbravejam contra
a explosão de eletroeletrônicos das Casas Bahia em bairros pobres.
Não entendem que o poder simbólico de uma tevê de plasma, de uma
corrente de ouro, de um Playstation e de um tênis Nike é
imensurável.
O sujeito com esses
bens de consumo passa a não se sentir mais diferente dos riquinhos
que vivem da ponte pra lá. Sente-se feliz, confortável,
confiante e, a palavra é essa, com auto-estima. Qual o problema há
nisso? Só se pode desprezar algo que se tenha. Os filhos dessas
famílias, num futuro próximo, não verão tanta importância em
assistir a uma televisão numa tela de 200 polegadas – isso foi
normal durante toda a vida deles – e darão prioridade a outras coisas,
como montar um coletivo de arte urbana. Grande parte dos filhos da
classe média da zona oeste de São Paulo só pôde escolher
profissões como clown, arte-educador e cineasta porque os pais –
ou os avôs – foram engenheiros, advogados ou donos de
imobiliárias. Alguém precisou ganhar dinheiro com profissões
tradicionais para o rapaz se dar ao luxo de ganhar menos e ter
prioridades mais nobres. Vocês querem que os meninos da favela leiam
Nietzsche sob o teto do barraco de madeirite. Podem ler também, sem
problema. Nada disso se opõe a ter uma bela tevê na sala. A gente
não quer só comida e filosofia.
Depois de tantos anos
de subemprego, de humilhação, de preconceito, de ser tratada como
invisível, ainda se exige da periferia que tenha prioridades
anti-consumistas. A classe média sempre comprou carro. Agora que os
pobres também podem andar numa máquina motorizada inventou-se a
moda que a bicicleta é o único veículo possível. É cultural ver
os pobres enfurnados em ônibus lotados, em trens desumanos ou, no
máximo, em chevetes com um adesivo de Jesus. Não é cultural vê-los
num carro com teto solar, direção hidráulica e quatro círculos na
frente. Ou mesmo em qualquer zero quilômetro com IPI reduzido. Dá-lhe exortar contra essa “pouca vergonha” que
“atrapalha a cidade”, como se o trânsito fosse uma invenção da
classe C. “Ei, bacana, quem te fez tão bom assim? O que cê deu, o
que cê faz, o que cê fez por mim?”, muitos dos pobres que
ascenderam devem, com razão, pensar.
Lembro-me de uma frase
que pipoca como uma dessas verdades inapeláveis pelo Facebook: “País
rico não é o que o pobre anda de carro, mas o que o rico usa
transporte público”. Calma lá, amigos. Vocês passaram décadas
transformando São Paulo em sinônimo de carangas gigantes e agora,
que os mais pobres também podem ter as máquinas, vêm com esse
papo? Pobre não pode estar certo nem com dinheiro. Sugiro que você
pegue sua bicicleta diariamente na Praça da Sé e vá pedalando para
Guaianases, Vila Ré ou Guarulhos; ou até Vila Joaniza, Taboão da
Serra ou Vila Santa Catarina; ou até Brasilândia, Pirituba ou
Jardim Brasil. Ir da Vila Madalena para o Alto de Pinheiros é mole.
Primeiro deve-se ter um sistema de transporte público eficiente.
Depois, as pessoas – de qual classe social forem – que decidam se
querem ou não ter um carro.
De volta aos Racionais.
Em uma das faixas de Nada Como um Dia, Brown deixa de lado a cantoria
para contar uma situação que presencionou num Dia das Crianças.
Era a de um menino pobre da zona sul de São Paulo que, em vez de
presente, ganhou um tapa na cara da mãe por xingá-la por não ser
presenteado. Brown termina a história: “Aí
eu fiquei pensando, né, mano, como uma coisa gera a outra. Isso gera
um ódio. O moleque com 10 anos tomar um tapa na cara no Dia das
Crianças. Eu fico pensando quantas mortes, quantas tragédias em
família o governo já não causou com a incompetência, com a falta
de humanidade. (…) Ali marcou pra ele. Talvez ele tenha se
transformado numa outra pessoa aquele dia”. E agora, imagine que se
em vez de tapa na cara o garoto ganhasse um tênis que solta luzinha
ou um carrinho de controle remoto. É isso que está acontecendo cada vez mais. É
consumismo? É. E o que a classe média de São Paulo fez toda a
vida? Deixem de eco-egoísmo.
Não
se deve ver com incoerência alguma o desejo de consumo. A reclamação
de Brown contra os playboys
de carrão é que Pero Vaz de Caminha foi o primeiro branco a ter um
Audi por estas terras e desde então só descendente de europeu
conseguiu chegar perto de um. O que o adorador de jazz não percebeu
é que ele próprio acha estranho, sem se dar conta, um preto de
periferia no comando de Audis e Citroens, mesmo que seja um dos
artistas de música popular mais conhecidos do País. O mundo seria
muito melhor se o desejo geral fosse pelo bem do próximo, pela paz
mundial e pela elevação espiritual. Mas,
como se sabe, em São Paulo Deus é uma nota de 100.
12 comentários:
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Gostei muito do texto. Nos fez ter uma outra visão do mundo,e não apenas de um lado.
que ótimo conhecer este blog, gostei muito do texto!
Adorei seu texto, Bruno. Nos faz olhar pelo outro lado da janela. Você disse exatamente o que penso mas não consigo expressar!
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O discurso de classe é sempre sectário e equivocado, já que nenhuma classe é um grupo totalmente homogêneo de pessoas com perfis idênticos. Tem pobre legal e rico legal, pobre safado e rico safado, pobre batalhador e rico batalhador. Não é a pobreza ou riqueza que diferencia de fato as pessoas, mas o que elas fazem disso. Sim, parece mais fácil ser rico - se riqueza fosse de fato uma virtude em si seria verdade, mas não é. Conforto é bom? Pode ser, mas também tem seu lado ruim e acomodado. Saciedade é bom? Sim, mas também pode virar excesso. Acesso é bom? Depende, já que quem tem acesso fácil ao que é bom pode tê-lo também ao que é ruim.
Já entrei nessa discussão com você algumas vezes, e acho que seu problema é essa visão dicotômica, maniqueísta das coisas: ou a pessoa entende que os pobres têm direitos ou ela é um FDP playboy que quer que pobres morram pobres.
O mundo tem espaço para algumas visões a mais, Bruno. Até UM mês atrás, eu, classe média, com universidade, emprego com carteira assinada, etc, não tinha smartphone, nem achava que deveria ter ainda, já que meu aluguel consumia metade do meu salário (agora vai piorar, pq aumentou, obrigada governo Lula pelos megaeventos no Rio) e eu vivia no vermelho. Não era a hora, como ainda não é (vou ficar mais no vermelho todo mês e não, isso não eleva minha autoestima). Mas sofri um crime (sim, é crime previsto por lei e dá até cadeia) de invasão de privacidade quando usei meu Facebook no celular de outra pessoa. Enfim, achei que depois dessa precisava de privacidade. No entanto, o plano é caríssimo para mim. Não estou feliz com isso, vou me foder. E é essa noção que quem compra sem pensar (eu resisti 3 anos)não tem, sendo pobre ou rico. A diferença é que o rico, feliz ou infelizmente, não vai cair no vermelho. Acho que quem diz que quem não tem não deveria gastar além tá mais preocupado com a vida dessas pessoas do que quem diz "gastaê, se fodeaê, mas fica na moda". Acho essa visão a mais capitalista possível. Não quero que pobres gastem além do que podiam. Eu não gasto, e quando gasto me fodo muito (e não fico feliz com isso), então imagino quem é pobre. O governo adora esse estado de coisas, pq deve aos bancos, que fazem a festa com os juros do cartão de crédito. Quanto aos carros, eu acho que não só o pobre como todos devem ter transporte público BOM. Não de qualidade, BOM PACARALHO, como na Europa. Eu aos 18 anos decidi: não vou ter carro. Não quero, não acrescenta nada pro mundo. Polui. Mata. Quero poder andar de ônibus BOM. Metrô BOM. E quero, sem demagogia, que daqui a 50 anos o Rio não tenha verões de 50ºC (o que já acontece em Bangu, aliás). E que São Paulo não precise de máscaras pra respirar. Não digo que todos precisam pensar assim, a humanidade precisaria ser muito evoluída, mas o governo, se não tivesse rabo preso com montadoras, com o petróleo, etc, deveria ter esse papel, de pensar o bem COMUM. E botar IPI zero não é pensar "agora todos os pobres vão poder ter carrinho, que lindo" - o que já poderia ser eleitoreiro, mas beleza - mas sim uma visão CURTA, LIMITADA, de produzir mais pra exportar mais, gerar mercado consumidor pra Petrobras, etc etc etc, enquanto o PAÍS SE FODE ambientalmente. Então quando você achar lindo todo mundo de carro, lembre que os engarrafamentos não são só um saco, pq as pessoas querem chegar em casa. Lembre dos dias mais quentes da sua vida, e pense que daqui a 50 anos pode ser assim todo verão. O problema não é com os pobres, é com a maioria consumindo errado. No Brasil, os pobres (Classe C,D,E...)ainda são maioria.
Entendo em parte seu discurso e até vejo certa verdade nele. Mas nem todo mundo que ataca consumismo desenfreado de quem não pode e IPI zero é um FDP que não quer ver o pobre bem. É bem mais profundo e amplo que isso. bjo
Táia, pra começar, é preciso de uma dose de maniqueísmo pra andar pra frente. Discursos "profundos e amplos" são feitos desde que o Brasil é Brasil e só serviram pra sair como gatinhos da mesa do bar, não pra mudar nada. A questão é simples e direta: enquanto houver bens que uma parcela considerável da sociedade pode ter (carro, por exemplo), todos têm o direito de ter. Se a maioria tiver e isso causar problemas não temos legitimidade, como sociedade, pra discutir os problemas que isso vai trazer. Você pode não gostar de carro, beleza, muito bonito, mas pra muita gente carro é essencial. Essencial pra locomoção, essencial pra se andar numa cidade perigosa durante a madrugada, essencial pra se sentir mais bonito, essencial pra ter auto-estima. Não só carro. As propagandas empurram as coisas o tempo todo e, quando pobre começa a ter, vira um escândalo. Num nível superior, pq aí não são apenas carros e tênis que soltam luzinhas, vide o funk ostentação. Eu entrevistei o Emicida esses dias e ele disse: "As pessoas se chocam com o funk ostentação pq eles ganham e gastam dinheiro de forma tão irresponsável que a propaganda e a televisão sempre ensinaram". Enquanto você clama por discursos profundos, quer na prática que as pessoas mais pobres apenas usem dinheiro para comprar arroz, feijão e livros. Deixe as pessoas livres pra comprar o que elas bem desejarem. Isso não vai acabar com o Brasil, te garanto. Pelo contrário. É uma etapa fundamental que temos que passar para tornar o Brasil um país profundamente digno e igual, como os países da Europa que tanto amamos.
Pra terminar: é uma etapa pq, daqui a duas gerações, as pessoas não virão mais como essencial pra auto-estima ter um carrão. A classe média branca descolada passou por isso. Quando crianças, todos eles tinham um pai com um carrão. Aí cresceram e viram que carros não os tornavam mais bonitos nem nada, PQ SEMPRE TIVERAM. Aí inventaram outras formas, umas baboseiras, outras realmente mais saudáveis, mas outras formas de imaginar a cidade. Por isso a maioria precisa passar pela etapa de ter o que uma parcela sempre teve. Pra em poucas gerações dispensar essas coisas. Não esqueça que a dinamarquesa Copenhague fofinha, por exemplo, tinha um trânsito terrível na década de 70. Com exclusão, nem que seja de bens de consumo, só criaremos mais ódio e desigualdade. Se todos puderem ter, cansarão do brinquedo e formaremos um país melhor. Só isso.
Anônimo, não é a riqueza ou a pobreza que torna as pessoas melhores ou piores, tudo certo. O problema é haver grupos com privilégios. E grupos bem definidos com privilégios há trocentos anos. Enquanto a favela parecer a Nigéria e o Leblon parecer a Dinamarca é que o bagui tá feio. Se os grupos se misturarem na questão financeira, a sociedade fica bem melhor pra todo mundo, mesmo havendo ricos e pobres.
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