Recentemente, houve polêmica alardeada pela imprensa por causa da decisão do MEC de aprovar livros com “erros de português”. Na verdade, não havia erro algum. As publicações destacavam a importância do português padrão, mas diziam também que não é inapropriado falar com naturalidade, comendo algumas letras, plurais etc. Que a comunicação espontânea é mais importante que correr para um dicionário antes de abrir a boca.
É o que todos fazemos diariamente. Um exemplo é “pra” em vez de “para”. Ninguém acredita ser incorreto. Agora, se o sujeito falar “arvre” no lugar de “árvore”, é considerado um semianalfabeto. Mas o fenômeno é exatamente o mesmo: o sumiço de uma vogal no meio da palavra. Mas por burrice ou má-fé, a imprensa nacional prefere manter o idioma como um símbolo perverso de exclusão social.
No campo cultural, muito se falou sobre isso. Oswald de Andrade defende em Pronominais:
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
Já Manuel Bandeira sentencia na comovente Evocação do Recife:
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
Já Manuel Bandeira sentencia na comovente Evocação do Recife:
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
Em Macunaíma, o personagem criado por Mário de Andrade ironiza os paulistanos:
Ora sabereis que sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra.
Em Macunaíma, o personagem criado por Mário de Andrade ironiza os paulistanos:
Ora sabereis que sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra.
Mas o maior defensor da língua brasileira – provavelmente sem essa pretensão – foi Noel Rosa. Em várias músicas o Filósofo do Samba mostra seu desdém em “macaquear a sintaxe lusíada”. Noel abusava de gírias e coloquialismos. E às vezes ia direto ao ponto.
É o caso do samba Mulata Fuzarqueira. Em dado momento, a letra diz: “"Meu amô não tem R / mas é amô debaixo d'água". Isso é bonito demais. E é sintético demais. Resumia como só Noel sabia resumir suas ideias tão espertas.
Mas o maior exemplo é Não Tem Tradução. Se um dia a língua portuguesa do Brasil se tornar oficialmente a língua brasileira, o hino ao idioma mãe terá de ser esse samba.
Há gente importante que concorda comigo. Um deles é Orestes Barbosa, contemporâneo de Noel e ardoroso defensor do jeito brasileiro de falar. Ao ouvir pela primeira vez o verso É brasileiro, já passou de português, exclamou, espantado: “Esse sem-queixo é demais. Um gênio! A gente aqui escrevendo, escrevendo, e ele resume tudo em meia dúzia de palavras. Exatamente meia dúzia!” E completou, emocionado: “Eu trocaria toda a minha obra por um só verso deste samba”.
Seguem as canções, cantadas em bom brasileiro.
5 comentários:
Noel faz várias afrontas à aristocracia. Em "Filosofia", nunca vi um desprezo tão lindo pela opinião alheia. Em "Positivismo", critica-se a ordem e o progresso. Noel é na real o branco mais preto do Brasil.
Sim! Noel merece bem mais o título. É bem mais que Vinicius, disparado.
Apenas uma correção e uma observação.
A correção, ao texto: 'Não Tem Tradução' tem letra e música de Noel, não é uma parceria com Vadico.
A observação, ao comentário de Pedro Amaral: a parte da letra de 'Positivismo' que critica a ordem e o progresso é de Orestes Barbosa. Noel escreveu a melodia e os versos da última quadrinha (a que fala em 'café pequeno').
Tem razão, Fabio. Já corrigi no texto. Valeu.
Ótimo, Bruno. Parabéns pelo blog!
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