12 de julho de 2011

A língua brasileira segundo Noel Rosa

Recentemente, houve polêmica alardeada pela imprensa por causa da decisão do MEC de aprovar livros com “erros de português”. Na verdade, não havia erro algum. As publicações destacavam a importância do português padrão, mas diziam também que não é inapropriado falar com naturalidade, comendo algumas letras, plurais etc. Que a comunicação espontânea é mais importante que correr para um dicionário antes de abrir a boca.

É o que todos fazemos diariamente. Um exemplo é “pra” em vez de “para”. Ninguém acredita ser incorreto. Agora, se o sujeito falar “arvre” no lugar de “árvore”, é considerado um semianalfabeto. Mas o fenômeno é exatamente o mesmo: o sumiço de uma vogal no meio da palavra. Mas por burrice ou má-fé, a imprensa nacional prefere manter o idioma como um símbolo perverso de exclusão social.

No campo cultural, muito se falou sobre isso. Oswald de Andrade defende em Pronominais:

Dê-me um cigarro
Diz a gramática

Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um
cigarro


Já Manuel Bandeira sentencia na comovente Evocação do Recife:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada


Em Macunaíma, o personagem criado por Mário de Andrade ironiza os paulistanos:


Ora sabereis que sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra.

Mas o maior defensor da língua brasileira – provavelmente sem essa pretensão – foi Noel Rosa. Em várias músicas o Filósofo do Samba mostra seu desdém em “macaquear a sintaxe lusíada”. Noel abusava de gírias e coloquialismos. E às vezes ia direto ao ponto.

É o caso do samba Mulata Fuzarqueira. Em dado momento, a letra diz: “"Meu amô não tem R / mas é amô debaixo d'água". Isso é bonito demais. E é sintético demais. Resumia como só Noel sabia resumir suas ideias tão espertas.

Mas o maior exemplo é Não Tem Tradução. Se um dia a língua portuguesa do Brasil se tornar oficialmente a língua brasileira, o hino ao idioma mãe terá de ser esse samba.

Há gente importante que concorda comigo. Um deles é Orestes Barbosa, contemporâneo de Noel e ardoroso defensor do jeito brasileiro de falar. Ao ouvir pela primeira vez o verso É brasileiro, já passou de português, exclamou, espantado: “Esse sem-queixo é demais. Um gênio! A gente aqui escrevendo, escrevendo, e ele resume tudo em meia dúzia de palavras. Exatamente meia dúzia!” E completou, emocionado: “Eu trocaria toda a minha obra por um só verso deste samba”.

Seguem as canções, cantadas em bom brasileiro.


5 comentários:

Anônimo disse...

Noel faz várias afrontas à aristocracia. Em "Filosofia", nunca vi um desprezo tão lindo pela opinião alheia. Em "Positivismo", critica-se a ordem e o progresso. Noel é na real o branco mais preto do Brasil.

Bruno Hoffmann disse...

Sim! Noel merece bem mais o título. É bem mais que Vinicius, disparado.

Fabio Gomes disse...

Apenas uma correção e uma observação.

A correção, ao texto: 'Não Tem Tradução' tem letra e música de Noel, não é uma parceria com Vadico.

A observação, ao comentário de Pedro Amaral: a parte da letra de 'Positivismo' que critica a ordem e o progresso é de Orestes Barbosa. Noel escreveu a melodia e os versos da última quadrinha (a que fala em 'café pequeno').

Bruno Hoffmann disse...

Tem razão, Fabio. Já corrigi no texto. Valeu.

Fabio Gomes disse...

Ótimo, Bruno. Parabéns pelo blog!