20 de dezembro de 2010

Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito cantaram suas tatuagens

Um dos grandes amores da vida de Nelson Cavaquinho era Ligia, uma mulher sem-teto que dormia aos pés da estátua de dom Pedro 1º, na praça Tiradentes, centro do Rio. Os dois costumavam ficar horas conversando, tomando cachaça, ali, sentados à beira da escultura. Não raro adormeciam, só acordando com os raios do sol - ou sob a ordem de algum policial mal-humorado.

A fascinação de Nelson pela mulher chegou a tal ponto que o compositor resolveu tatuar o nome Ligia em seu ombro direito. Na mesma época o parceiro Guilherme de Brito havia feito o samba Tatuagem: O meu único fracasso / Está na tatuagem do meu braço... Ele fez a canção como uma forma de reclamar do preconceito que sofria da polícia e de muitas pessoas pela tatuagem que também levava no corpo, um índio em um dos braços. Um dia tentou até apagá-la esfregando castanha de caju no local. Só serviu para deixar o índio com uma cicatriz na testa.

Como os dois compositores tinham um acordo, Nelson entrou como parceiro da música, além de um tal Paulo Gesta. O compositor viu na letra uma forma de homenagear a amada, uma mulher que levava uma vida dura e sofria preconceito de tudo o que é lado. Já para Guilherme, era para reclamar da discriminação que ele próprio sofria. Não importa. O último verso cabe para os dois casos: Muita gente tem o corpo tão bonito / Mas tem a alma toda tatuada.

9 de dezembro de 2010

Viver, sofrer e amar demais

Ela abandonou o lar - num tempo que isso era um escândalo - para poder seguir o sonho de ser cantora. Maysa tornou-se dona de um dos repertórios mais melancólicos da música brasileira, e sua voz grave virou sinônimo de dor de cotovelo, de música de fossa. Dada a arroubos, sabia ser gentil e dar amor como poucos, mas também ia ao fundo do poço com as separações. "Minhas músicas refletiram meu estado de alma, minha tristeza e solidão. Nunca consegui compor nada alegre".

A Catedral da Sé, em São Paulo, estava cheia de pompa naquela tarde de 24 de janeiro de 1955. A família Monjardim, uma das mais importantes do Espírito Santo, dava a mão de uma jovem de 17 anos a André Matarazzo, sobrinho do conde Francesco Matarazzo, um dos homens mais ricos do Brasil. A moça entrou na igreja com vestido de cetim italiano branco adornado por pérolas, sendo clicada por ávidos fotógrafos de colunas sociais. Era enredo de conto de fadas para boa parte das jovens da época. Mas, mais tarde, todos descobririam que Maysa Figueira Monjardim era diferente. Logo depois romperia o casamento, se lançaria como uma das cantoras mais singulares do Brasil, encantaria multidões e seria vítima de desamores e angústias sem fim. A mulher dos enormes e profundos olhos verdes seguiria sua trajetória, como diz a música de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira famosa em sua voz, para "viver, sofrer e amar demais".
 
A menina nascida em berço de ouro já chocava as pessoas desde pequena pelo jeito sincero e corajoso. Na adolescência era arteira e namoradora, mas também apresentava tendências à depressão. Nessa época já tirava algumas notas ao piano. A primeira composição, com apenas 12 anos, desvelava seu estado de espírito não muito otimista: Adeus, que seria gravada mais tarde em disco.
O namoro com André Matarazzo começaria quando tinha apenas 15 anos. Ele era bem mais velho: 33 anos. Depois da festança, a vida do casal começou a ficar cada dia mais atribulada. Ela queria levar à frente a carreira de cantora. Ele não gostava nada da ideia. Até que um produtor a ouviu cantar numa festa caseira e se encantou com sua voz rouca e sedutora, e insistiu para que gravasse um disco. O marido cedeu, mas exigiu que a capa não trouxesse seu sobrenome e nem a foto da cantora. Assim aconteceu, mas o disco logo começou a fazer sucesso e o casamento a ruir, até Maysa ir para o Rio e confidenciar ao pai: "Não volto mais". Ser dondoca não era seu projeto, e jogava fora a vida confortável. Com o marido, teve seu único filho, o hoje diretor da Globo Jayme Monjardim.

Nasce a cantora
No Rio de Janeiro, Maysa começou a se apresentar em boates com as suas composições próprias. Era raro mulher compor à época. Logo gravaria outros discos e o sucesso ia aumentando. Entre as canções emblemáticas, Meu Mundo Caiu, Amargura, Tarde Triste, Felicidade Infeliz, Pedaços de Saudade, além de uma magistral versão de Ne Me Quitte Pas. Mas incomodava-se com a marcação cerrada da imprensa. Em 1958, como constata a biografia Maysa - Numa Só Multidão de Amores, de Lira Neto, não houve um dia sequer que não havia algo sobre a cantora em jornais paulistas e cariocas. 
 
Além da carreira em boates cariocas, começou a se apresentar no exterior, a comandar programas de tevê, a participar de filmes como atriz. Tamanha pressão fez que ela bebesse cada dia mais e a ficar mais irritadiça. Também costumava tomar remédios para emagrecer, que lhe piorava o humor. Mais tarde admitiria que aquela fora uma das fases mais turbulentas de sua vida. As músicas eram uma saída para desvelar sua personalidade melancólica. "Minhas composições sempre refletiram meu estado de alma, minha tristeza e solidão. Nunca consegui compor nada alegre", confessou a autora de mais de 50 cançõess. Para Manuel Bandeira, seus grandes olhos verdes eram "dois oceanos não-pacíficos". 
 
Os seus relacionamentos amorosos tinham a mesma intesidade da carreira. Uma das suas grandes paixões foi o (então) jornalista Ronaldo Bôscoli, que conheceu em 1961. Até mudou o repertório para gravar um disco só de bossas dele e de Roberto Menescal. Os dois seguiram juntos para uma turnê em Buenos Aires, mesmo com Bôscoli mantendo um relacionamento sério com Nara Leão. O clima foi apaixonado, mas também houve brigas homéricas em restaurantes e hotéis. Na volta, Bôscoli estava decidido a ficar só com Nara. Mas não esperava que Maysa fosse capaz de fazer tudo por amor. Ainda no aeroporto do Galeão, convocou a imprensa e disparou: "Quero anunciar que vou me casar com Ronaldo Bôscoli". O sujeito não soube o que fazer. Nara, sim, e o relacionamento acabaria para sempre.
Mas não com Maysa, que se manteria entre indas e vindas durante alguns anos, mesmo após ela se casar com o espanhol Miguel Azanza. Quando descobriu que Bôscoli iria se casar com Elis Regina, encontrou a cantora num bar e esbravejou: "Gauchinha, você não canta porra nenhuma", e quase acertou-a com uma garrafa de uísque. Mais tarde, afirmou: "A Elis é a melhor cantora do Brasil".

"Sou uma mulher só"
Já saturada de apresentações e sentindo que o momento era de músicas diferentes, Maysa decidiu passar uma temporada na Espanha. Voltaria em 1969, quando faria um antológico show no Canecão. O público exigiu que ela voltasse oito vezes ao palco. A revista Visão escreveu, na semana seguinte: "Quando sua voz quente, rouca, inapelável, se estendeu, abraçando o Canecão inteiro, houve o silêncio. Nem um som, nem o menor ruído, nem o gelo de milhares de copos ousavam sequer tilintar".

Depois, separou-se de Miguel e conheceu o Ator Carlos Alberto, com quem se cararia. O casal foi viver em Maricá, cidade que Maysa ficaria até o fim da vida. O casamento lhe fez beber menos, e sua alegria lhe traria de volta a beleza arrebatadora. Também voltou a gravar discos e a participar de novelas. Mas a relação aos poucos foi se desgatando, até separarem-se em 1975. A melancolia e o medo da solidão voltavam a assombrá-la.
No comecinho de 1977 recebeu a notícia de que seria avó. Encheu-se de alegria pela novidade, mas continuava triste com todas as outras coisas da vida. Para piorar, os remédios que tomava para emagrecer não a deixava dormir há dias. Entrou em sua Brasília e seguia do Rio a Maricá, mas não chegou a passar a ponte Rio-Niterói. O acidente em 22 de janeiro de 1977 abreviava a vida de uma das personalidades mais singulares da música brasileira. Ela tinha apenas 40 anos. No seu diário, uma das últimas anotações era: "Tenho 40 anos. 20 de carreira. Sou uma mulher só. O que dirá o futuro?".